Florim pouco, meu pengõ primeiro
sumário .
VI

Florim pouco,
meu pengõ primeiro


Os avós maternos são desses nobres decadentes que perderam tudo e precisaram se dizer socialistas - à contragosto - depois que o Palacete foi invadido pelas tropas de Hitler em Budapeste, na Hungria.

Mesmo após o final da II Guerra, a situação da família não melhorou muito, já que o país estava estagnado e sem reservas. Foi justamente nessa época que nasceu Kocsis, filho varão e responsável por transmitir os nobres genes da família adiante.

Ou melhor, seria, pois não foi o que aconteceu.

Logo o jovem rebento estaria envolvido em atividades escusas, não aprovadas pelos pais e, sem motivo aparente, resolveu entrar pra marinha. Uma afronta à nobre família na qual nunca ninguém precisou trabalhar e ainda mais numa atividade tão, tão, tão... braçal! Essa coisa de anarquismo, comunismo, socialismo, e outros ismos nunca foram aprovados pelos pais.

Coisa de desocupado mesmo.

Kocsis embarcou para dar a volta ao mundo - porém não necessariamente como marinheiro, como se apresentava, mas como ajudante de serviços gerais - passando roupa e fazendo outros serviços secundários para a KGB.

Numa dessas viagens aportou em Belém, e resolveu visitar o Bar do Parque, um lugar muito bem recomendado. Porém, em dado momento, achou que tinha bebido demais. Conversou com uma bela mulher e começou a achar que era um travesti. Opa, não achou, era um travesti! Isso era vergonhoso demais pra um marinheiro!

Era hora de ir onde tinha mulher de verdade: O Lapinha.

Era um lugar sensacional. Nada de polacas clarinhas, de cabelo louro, olhos claros e essas coisas delicadas e meio angelicais. Eram mulatas de bunda grande, rebolando, ali, bem na frente dele. O paraíso moreno. E essa tal de caipirinha, então? Tomou todas...

Olhou pro palco novamente e viu uma moça linda sambando ao lado do Rudy Star, a estrela do show. Moreninha do olho puxado, baixinha, muito atraente, talvez fosse até levemente estrábica, pois parecia que olhava para ele o tempo todo. Chamou o garçon da casa, e perguntou o nome da moça. Como resposta ouviu: dez mil cruzeiros!

Contou os trocados. O que ia perder afinal? Em minutos estava num quartinho com aquela deusa rebolativa testando todas as posições sexuais que aprendeu durante a volta ao mundo.

Mas não era suficiente, precisava saber o nome dela.

Conceição.

Ah, “Conceiçón”...

No dia seguinte queria encontrá-la novamente, e foi o que aconteceu. Depois de quatro dias de pura paixão, chegara o momento de Kocsis voltar para casa. Mas ele já estava fisgado, e durante um passeio pela Praça da República, foi num coreto que ele a chamou para conhecer a Europa - um lugar maravilhoso, onde ela teria tudo o que quisesse sob a benção do socialismo.

Conceição, que até então não se iludia com essas conversas de gringo, se interessou pelo socialismo. Logo estavam conversando animadamente sobre Lênin, Stálin e Trotsky, e o grande mestre Marx. O que iria perder? Já tinha terminado a faculdade de sociologia na UFPA e, como estava desempregada desde então, ganhava a vida como stripper e acompanhante n’O Lapinha.

Aceitou pensando no conhecimento que poderia absorver visitando um país socialista e nas pesquisas que poderia publicar.

Aceitou.

Ao contrário de Belém, Bundapeste era muito fria, e apesar de não saber falar húngaro, o contato com os sogros inicialmente não parecia difícil - até porque eles estavam mais preocupados em rever o filho do que com a presença ela.

Então a mãe perguntou onde ela morava.

- Na curva do Beco do Relógio – foi a resposta.

Seguiram-se caras de espanto e frases exaltadas, pois a palavra kurva significa puta em húngaro. Aos poucos a sogra se revelou e começou a dizer tudo o que realmente pensava da jovem Conceição - uma latina pobre misturando seu sangue impuro com os nobres europeus. E isso era só o começo, pois brevemente aquela época lasciva em Belém revelaria que aquele relacionamento traria frutos mais duradouros do que lembranças.

Mesmo continuando na Hungria, a jovem paraense percebeu que era persona non grata e que a confusão com as palavras nunca seria esquecida, ainda mais por pessoas tão “nobres”. A situação simplesmente chegou a um ponto insustentável quando descobriu que os sogros tinham um plano secreto de seqüestrar e envenenar a neta após o nascimento. Para os “nobres” era uma afronta ter alguém na família que não fosse da mais nobre estirpe e não possuísse um único título de nobreza.

Conceição jamais aceitaria aquilo e, mesmo grávida, insistiu para voltar ao Brasil com Kocsis, que acabou acatando sua decisão após romper com os pais, situação que se estenderia até sua morte.

Logo após a partida deles, a Hungria se levantaria economicamente e as terras confiscadas pelo governo, antes inférteis, seriam devolvidas e começariam a gerar renda, quando eles novamente enriqueceriam. Aparentemente, tudo estava perfeito, mas a idéia de que a única descendente da família estava longe os pertubava.

Logo, isso os motivou a contratar um detetive particular.

Somente aos dezenove anos, Pepléria conheceria enfim seus avós paternos, e deles receberia uma considerável quantia em Euros. Uma lembrancinha.

Secretamente, porém, mais estava por vir.

Pepléia havia sido incluída no testamento dos velhos, cuja saúde já não estava indo tão bem.


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