Obituário
sumário .
XV

Obituário

Pepléria (Pep, para os íntimos) acabara de completar 27 anos, mas aparentava apenas 22.

Filha de uma brasileira e um húngaro, era uma foto-jornalista free-lancer que vivia sozinha em um pequeno apartamento em Belém, cidade cujo calor simplesmente odiava, talvez tanto quanto a si mesma. Tinha uma gata muito negra e muito arisca que batizou Balalaika em homenagem à marca de vodka que mais gostava. Balalaika desenvolveu uma predileção por outras gatas, e se relaciona exclusivamente com elas, tratando os machos da espécie com unhadas e mordidas. É um bicho infernal: destrói o apartamento toda vez que entra no cio, mas Pepléria a mantinha porque acreditava que o animal lhe traz sorte.

Por muitos anos acreditou que houvesse nascido em um navio, durante uma tempestade – e que não havia chorado durante o parto – porém, uma das maiores decepções de sua vida ocorreu justamente quando descobriu que tudo não passava de uma história contada por sua mãe apenas para diverti-la, e que na verdade havia nascido em uma maternidade de um hospital qualquer de Santa Maria de Belém do Grão Pará.

Nativa de escorpião, com ascendente em peixes, tinha os olhos claros e era ruiva, como o pai; baixa e morena como a mãe. Também tinha sardas. Seu corpo era escultural. Ela se movimentava de forma graciosa, como se fosse uma bailarina. Possuía um sinal atrás da orelha direita, uma aranha tatuada na nuca, um discreto e delicado piercing no nariz.

Gostava de fast-food e junk-food, mas desenvolveu uma curiosa ojeriza a Coca Cola. Só tomava Guaraná Garoto e adorava açaí. Dirigia uma Honda Biz, mas odiava. Só a fazia sentir mais calor – e ela ainda se molhava quando chovia. Era muito vaidosa e criativa. Gostava de combinar estilos. Um dia estava moderninha e, no outro, só para desafiar a mãe, uma espécie de new-hippie, de bata e calça jeans rasgada. Gostava de se maquiar, usar perfumes fortes e ter sempre as unhas pintadas de formas extravagantes.

Tinha uma saúde de ferro, mas abusava muito dela. Toda vez que bebia, bebia em demasia. Sofria de distúrbio bipolar, o que fazia dela ciclotímica (adorava a palavra), uma mulher de fases. Tinha alergia a morangos. Quando os comia, a pele se empipocava, os lábios inchavam e a bunda dobrava de tamanho.

Desenvolveu-se muito rápido: enquanto as colegas ainda eram meninas ela já tinha as curvas bem desenhadas e os volumes bem postos. Apesar de ter muita energia sexual, era também muito cerebral – o que impedia, principalmente, que tivesse uma relação que durasse mais do que três dias. Tinha muito medo de se envolver amorosamente.

Era apolítica, sarcástica e também rebelde. Odiava o mundo acadêmico, principalmente por causa da mãe, professora universitária que sempre foi muito rígida com ela, sobretudo durante a infância. Por culpa de sua aversão à academia e pelo fato de possuir uma biblioteca formidável em casa, cedo tornou-se autodidata – no que foi muito bem sucedida, visto que era extremamente inteligente. Por ser muito consciente de que era uma mulher muito linda e muito inteligente muito cedo, Pepléria tornou-se um tanto arrogante, prepotente e agressiva. Também muito egoísta e ansiosa. Mas no fundo tudo isso não passa de uma mascara para esconder a sua incrível insegurança.

Perdeu a virgindade aos 12, e de forma traumática, para o Tio Waldo, irmão de sua mãe que fazia o papel de figura paterna desde a morte do pai, ocorrida em um naufrágio quando tinha sete anos. Depois da experiência trágica, tornou-se incapaz de confiar em um homem. Isso a fez passar muito tempo em companhia de outras mulheres, pelas quais muitas vezes se apaixonou e com as quais viveu tórridas paixões, ao longo de toda a adolescência.

Aos 17, voltou a incluir os homens no cardápio, ao conhecer Fábio, um professor homossexual de 36 anos, por quem se apaixonou perdidamente. Receoso a princípio, ele também acabou se entregando aos encantos de Pepléria, e os dois foram felizes durante algum tempo. Mas logo ele se deu conta de estar vivendo uma mentira, e acabou abandonando-a, o que a fez entrar em uma depressão profunda. O episódio serviu apenas para aumentar a sua já imensa aversão aos homens.

Durante a infância, sua mãe era uma pessoa muito severa no tocante os estudos. Pepléria tinha horários rigoros para tudo e era vigiada de perto pela progenitora. Mesmo assim não era incomum que ela conseguisse driblar a velha e corresse para pegar manga no Cemitério da Saudade. O comportamento da mãe é justificado, em grande parte, pelo medo que ela tinha de que a filha se tornasse uma perdida, como seu tio Waldo. Os dois irmãos, apesar de muito pobres, tiveram oportunidades iguais na vida, mas ela se tornou professora e Waldenilson (seu nome real) vive no Beco do Relógio, no Jurunas, e gasta a maior parte do tempo jogando bilhar, bebendo no Bar do Lobo e babando pelas ninfetas do Paes de Carvalho.

Costumava ficar sentado na frente do busto de Simon Bolívar observando as colegiais ao longe até a semana passada, quando despencou-se uma manga bem no meio de sua cabeça, fazendo-o perder a sua memória. Esqueceu de absolutamente tudo, menos o fato de que adora bolinho de pirarucu.

Dos amigos de infância de Pepléria no Batista Campos, sobrou apenas um, fraco de corpo e de espírito, porém com uma grande profundidade de alma. Hugo (também conhecido por Plácido) é uma figura estranha e assexuada. Aos 27 anos, ainda é virgem. Sua incrível sensibilidade permite que ele sinta as energias e funcione quase como um guia espiritual, um médium. Embora não seja religiosa por não gostar do lado dogmático dos credos, Pepléria acredita em tudo que Hugo lhe diz. Foi ele o responsável por introduzí-la em uma série de rituais, das mais variadas crenças – que ela adorava. Participava fervorosamente do Círio, do Dia de Imanjá, já participou de Mesa Branca e recebeu Pomba Gira enquanto assistia uma apresentação de teatro.

A personalidade crítica e questionadora, ela herdou da mãe, que a batizou com este nome peculiar em homenagem ao mito da Flor de Peplos. As duas nunca se deram bem por uma série de motivos, mas, o principal, era o fato de que sua mãe sabia do abuso do tio, mas sempre fingiu que nada aconteceu. Nenhuma outra pessoa no mundo sabe sobre isso – e nem jamais saberá. Pepléria, ao menos, não dirá. Apesar da infância muito pobre, sua mãe foi a única da família a ascender na vida, e conseguiu um padrão muito confortável com muito trabalho, mas Pepléria não valorizava isso. Para Pepléria era difícil imaginar que sua mãe, hoje tão disciplinada e austera, tenha sido quase uma devassa na juventude. Conceição conheceu seu marido em um bar freqüentado exclusivamente por marinheiros, em Belém, em uma noite de farra.

A princípio, Kocsis se apresenta como marinheiro, mas, à medida que os laços de intimidade vão se formando, ele revela a ela seu lado idealista prático, que o fez se alistar na marinha mercante apenas por ser uma alma errante. Mais tarde, ela ficaria sabendo que ele traficava informações a serviço da KGB. Tudo isso faz com que ela se envolva cada vez mais, já que era uma socióloga profundamente identificada com os ideais anárquicos dos anos 70. Eles acabam tramando, em conjunto, a Guerrilha do Araguaia e depois precisam deixar o país em busca de exílio na Hungria. Mas ela não se adapta e os dois acabam voltando para o Brasil na primeira oportunidade – essa viagem, inclusive, seria o cenário para a fantasia inventada por Conceição a respeito do nascimento de sua filha.

Seus avós por parte de pai ainda vivem na Europa, mas nunca se aproximaram muito da menina, que sempre foi considerada uma excomungada. Depois de anos de isolamento, arrependidos, eles finalmente resolveram visitá-la e trouxeram de presente uma bela quantia em dinheiro. Com a fortuna repentina, Pepléria comprou uma máquina fotográfica profissional, uma cama de casal das grandes, um computador e a Honda Biz, da qual acabou se arrependendo rapidamente.

Desde os 19 anos, quando saiu de casa, sobrevivia da pensão do pai, que a Marinha pagava rigorosamente todo mês. Completava o orçamento fazendo fotos para todos os jornais da cidade. Tinha poucas posses e gastava apenas com o essencial (para ela): CDs, livros e festas. Como desejava ser independente - e também por conta dos conflitos - , recusou-se a aceitar qualquer quantia em dinheiro da mãe, tendo inclusive rasgado várias vezes os cheques que ela lhe enviava pelo correio, mas aceitava o dinheiro do pai com uma espécie de vergonha resignada, já que a mera lembrança dele lhe trazia sensações muito boas.

Pepléria sentia um vazio muito grande e, talvez por isso, seus lemas fossem Carpe Diem e “tudo aqui agora”. O seu maior e mais secreto sonho era o de casar e ter uma família, mas, quando lhe faziam essa pergunta, normalmente ela dizia que “queria ser reconhecida”. Ainda que costumasse se auto sabotar, liberdade era o que ela mais amava e mais prezava nessa vida.

Ela não admitia ser controlada. Se você quisesse deixar Pepléria feliz era só elogiar qualquer coisa que ela tenha feito. Se quisesse deixá-la brava, era só criticar o modo como conduzia sua vida: seus excessos, suas paixões. Quase sempre que lembrava do passado, Pepléria ficava triste – exceto quando se lembrava da última vez em que esteve com o pai, no seu aniversário de seis anos. Ele havia acabado de voltar da Europa trazendo muito chocolate suíço e um boneco de madeira, que logo se tornou seu brinquedo preferido, acompanhando-a até a vida adulta.

Atualmente Pepléria divertia-se com outro tipo de brinquedo. Possuá uma grande coleção de vibradores e brinquedos sexuais, que, em geral, assustavam os homens – especialmente quando ela queria usá-los neles. O gosto pela coisa ela tomou ainda muito cedo, ao descobrir os livros do Marques de Sade escondidos na biblioteca de casa. Assim que comprou o computador, passou a relatar suas aventuras sexuais na Internet, em um blog, onde assina com o pseudônimo Elektra.

Tudo que Pepléria queria agora era um homem que lhe desse carinho e também que cuidasse dela. Um homem que fosse seu amante, mas também seu pai. E queria ao lado desse homem viver em paz e pensar no futuro, sem precisar mais olhar para trás.


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