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V
A hora pestilencial
Perplexo desde criança, ele olhava para o teto do mundo. O sinal de imundície no ar, os urubus sobrevoando o local, um corpo jogado como um detrito mal elaborado pelos deuses. Talvez daqui a algum tempo se tornasse um cemitério de ossos perdidos. O céu cinza em plena luz do dia, o rarefeito sol iluminava os telhados de brasilit. As cuecas esburacadas no varal estendidas, a miséria estendida nos varais. Nenhuma cerimônia enquanto a mulher gritava com uma garrafa de destilada memória de cachaça pura e desfilava quase nua no beco onde nenhum relógio seguiria vivo a contar o tempo desgraçado daqueles homens que só trabalhavam para pagar-lhes o pirão.
Waldo nascera ali, entre os ratos, entre os buracos profundos de alguns esgotos, entre a multidão das baratas, num barraco mal iluminado, a madeira a cair entre as sobras do chão. Nascera de oito meses, quase desnutrido, um menino que mais tarde viria a dar trabalho, a ficar empinando papagaios o dia inteiro, até ficar escuro de tanto sol.
Aquela era a latrina, diziam os abastados dos outros bairros; a corja pútrida da cidade das mangueiras lá residia: prostitutas, cafetões, traficantes, viciados de visita, dentre outros elementos da fauna de marginais.
Com estes elementos costumava conviver Waldo.
O barraco em que vivera seus últimos anos tinha poucos objetos: um aparelho de televisão velho cuja sintonia sempre escapava; não possuía cama, mas um colchonete surrado e fedorento (o houvera molhado várias vezes em virtude das inúmeras goteiras em seu telhado). Ao lado do seu colchão, um porta-retrato com uma fotografia de sua bela sobrinha na adolescência. Ademais, não tinha geladeira, mas um isopor usado em que guardava não água, mas as cervejas que consumia ao longo do dia.
A água que bebia guardava numa garrafa de refrigerante, quase sempre no chão, ao lado de seu mínimo colchão. O banheiro era coletivo e ficava ao longo de um corredor onde os aposentos alugados tinham direito. Pela manhã já se via a enorme fila e um ensurdecedor barulho acompanhado de palavrões. Waldo acordava sempre de mal-humor e dor de cabeça, porque de segunda a sexta carregava uma garrafa de cachaça, onde descontava suas mágoas.
O número de goteiras não permitia que o barraco se esquentasse, exceto no verão, onde poderia acordar sempre com algum pedaço de sol lhe invadindo os olhos. Havia uma mesa de bar - da Cerpa - que havia ganhado numa rifa, e uma cadeira de ferro. Lá ele tomava seu café da manhã: um pedaço de pão sem manteiga e um pouco de café - que era dado por uma vizinha sacana que Waldo adorava comer enquanto seu marido estava no trabalho.
No amanhecer, o beco-labirinto abria-se para mais um dia de sobrevivência. Hora em que o mundo se prepara para a aventura aleatória de sua guerra subjetiva, o homem e ele mesmo, dentro de seus mistérios afetivos.
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