

PTERANODON


por

Cíntia Moscovich – narrador
Cláudia de Andrade – Gorete
Gerci Oliveira Godoy – Godofredo
Iara Rosali Mota de Miranda – Waldirene
Cardoso – motoboy de entregas ultra-especiais
Chovia chuva que Deus mandava. No prédio de sete andares, todos aproveitavam o domingo para descansar e colocar a casa em ordem. A única que trabalhava naquele dia era Gorete, preocupada em arrumar dinheiro para os doze filhos e para o marido doente. Ouviu-se a buzina de uma moto, lá do lado de fora do edifício. De seu pequeno apartamento no primeiro andar, Seu Godofredo resmungava:
– Meu santinho do pau oco, cadê aquela criatura imprestável? Vou tocar a sineta!
tlim...
Gorete deixou o balde e a vassoura e, correndo pelas escadas, abriu a porta para o motoboy de entregas ultra-especiais:
– Sim, quê era?
– Olha, eu vim entregar as 400 cascas de laranja do Tibet que me encomendaram... é aqui, né?
– Como? O quê? Mas... laranja... só um pouquinho...Ora, laranja de moto, nunca vi disso!
– Não é a laranja inteira, veja bem: é só a casca. Quatrocentas. É aqui ou não é? Será que eu confundi as coisas de novo?
– Sei não, o velho, seu Godofredo, é tão estranho... De repente ele só quer comer as cascas... Gente rica tem cada mania...Vou chamar ele.
Enquanto a conversa, meio estranha, corria, Waldirene desceu pelo elevador, pra ver quem tocava a buzina daquele jeito. Só podia ser um louco. Notou a porta aberta do 101 e antes mesmo de chegar mais perto pra ver o que estava acontecendo na frente do prédio, resolveu soltar um comentário bem alto pra puxar uma conversa com o vizinho:
– O que é isso? Que barbaridade! Quem é esse louco?
Sem ouvir o que a vizinha havia acabado de dizer, Godofredo, descascando uma maçã com uma faca sem fio, resolveu olhar pela janela. Viu o motoqueiro e percebeu que ele falava com alguém, do lado de dentro do edifício. Waldirene insistiu em sua idéia de começar uma conversa com o velho:
– Oi seu Godô! O senhor sabe o que está havendo?
Sem tirar os olhos do motoqueiro, Godofredo seguiu resmungando, como se não houvesse mais ninguém por ali:
– O que estarão fofocando aqueles imbecis?
– Calma seu Godô... Pra que o senhor quer tanta casca de laranja? Vai montar uma fabrica de chá?
– Não te interessa! Cuida do teu serviço – esbraveja Godofredo, confundindo Waldirene com Gorete, que, lá na porta, continuava se desculpando com o motoboy de entregas ultra-especiais:
– Olha, é um velho muito estranho, sabe... Muiiito... Mas eu só fico aqui na casa por causa dos meus doze meninos... Dinheiro não tá fácil... E depois, meu marido tá muito doente, e sou eu quem trabalha...
– Bom, eu não sei de mais nada. Eu tenho aqui 400 cascas de laranja do Tibet, oito pulgas treinadas de circo, dois martelos russos, um disco do Cauby Peixoto, uma pizza de aliche e escarola, seis cervejas e uma calcinha amarela. Alguma coisa eu tenho certeza que deve ser desse seu patrão aí. Ou será que é de algum outro morador do prédio? Posso dar uma perguntada nos outros apartamentos?
O motoboy de entregas ultra-especiais, entendendo as coisas menos do que nunca, resolveu dar uma olhada no prédio. Quem sabe não arrumava um apê legalzinho? Enquanto isso, Godofredo ainda pensava estar falando com a empregada, até que a vizinha enxerida resolveu lhe fazer um pedido:
– Seu Godô, eu preciso que o senhor libere a Gorete. Eu ainda tenho de ir à missa...
Antes que ele pudesse entender porque Gorete estaria pedindo para liberar a Gorete para que justamente a Gorete pudesse ir à missa, a verdadeira Gorete entra pela porta, esbaforida, e desculpando-se, como sempre:
– Desculpa... É que eu tava pensando aqui com meus botões e acabei desabafando com o moço da moto... Mas ele quer saber de umas cascas...
Experimentando um súbito lampejo de lucidez, o velho retruca:
– Que cascas? Eu não pedi casca nenhuma! Parece que tá todo mundo louco!
– Goreteeeeeeee! Eu tô só esperando que tu venha pra sair! Eu te pago também, criatura! – Waldirene aproveita para reclamar.
– Tá, tá... Já vou...
– Acho bom mesmo! Não tem cabimento ficar recebendo encomendas para os moradores do prédio. Vem! Anda logo!
O motoboy de entregas ultra-especiais, sem esperar resposta, foi entrando no prédio. Gorete e Waldirene se olharam quando ouviram as pegadas. Godofredo saiu atrás do motoboy de entregas ultra-especiais, que já subia as escadas em direção ao segundo andar. Mesmo que não houvesse pedido as laranjas, passou a querê-las com desespero. Pagaria o que fosse pelos martelos russos, pelo Cauby em elepê. Não gostava de pizza de aliche. Mas estava disposto a negociar.
– Só tem gente maluca nesse prédio. Última vez que entrego aqui... – gritou o motoboy de entregas ultra-especiais, para que todos ouvissem, enquanto subia a passos largos mais um lance de escadas. Gorete pôs a mão em concha ao lado da boca e berrou, para que ele também a ouvisse:
– Nada, moço. O velho é chato mesmo, deve ter pedido tudo, mas esqueceu... Também esqueceu de me pagar hora extra na semana passada, isso que tô precisada... Sabe... Tenho doze filhos para criar.
Godofredo não alcançou o motoboy de entregas ultra-especiais, que subiu os degraus de dois em dois. Tudo o que o solitário Godofredo queria era estar em casa. E bolar um plano para conseguir os martelos russos. E as laranjas. Entristecido, voltou ao apartamento e, surpreso, constatou a falta de um pequeno mimo:
– Gorete, incompetente! Cadê Aquela caixa que estava ali?
– Dei pro papeleiro, seu Godofredo! Ele tava tão precisado... Tanto quanto eu e o tadinho do motoboy de entregas ultra-especiais...
– Pois eu também tô! Já pra cá! A pia tá cheia de louça! Hoje o padre Almiro tomou café comigo! – reclamou Waldirene, tentando arrastar Gorete pelo braço.
– Ai, Waldirene! Eu sou uma só, criatura de Deus! Quem mandou oferecer café na tua casa? Depois eu que pago o pato! Pior é que tô com nadinha na barriga, igual à gurizada lá de casa e o Lindomar, meu marido doente...Tadinho dele, não consegue mais trabalho...
– E você pensou que ali dentro tinha o quê? – insistiu Godofredo, ainda obcecado com o sumiço da preciosa caixa.
– Um monte de papel amarelado... Mas me enganei, vi umas borboletas com alfinetes e mais um livro grande...
– Deixa de ficar espiando as coisas alheias que isso não é certo e vem fazer o teu trabalho ! – decreta, enfim, Waldirene, praticamente arrastando a empregada para fora do apartamento. Gorete segura-se na moldura da porta, enfia a cabeça para dentro do apartamento e, novamente, desculpa-se, ao mesmo tempo que consegue se desvencilhar de Waldirene e parte em direção a um cômodo especial:
– Seu Godofredo, já espanei os móveis, lavei a louça, varri... Só falta o quarto aquele, dos cacarecos... Nunca vi tanta coisa "velha" junta...
Enquanto todos conversavam no apartamento de Godofredo, o motoboy de entregas ultra-especiais subia as escadas de dois em dois degraus. Chegou ao quinto andar bufando. Foi quando um trovão espetacular sacudiu as paredes do edifício e fez com que o rapaz tivesse uma inusitada revelação:
– Opa! Que barulho foi esse? E por que estou subindo essas escadas? E de dois em dois degraus? E essa maluca que não para de falar em Deus? E ainda por cima ninguém pediu essas laranjas! Tudo isso só pode ser um sinal: eu tenho que largar essa vida de motoboy de entregas ultra-especiais pra seguir o meu sonho de infância: ser PALEONTÓLOGO.
Lá de baixo, Godofredo retrucou, enquanto procurava bloquear a passagem da empregada:
– O que? Eu estou ouvindo bem, falaram em paleontologia?
– Ih... acho que estou ouvindo VOZES. Era só o que me faltava. – pensou o motoboy de entregas ultra-especiais
Godofredo, tentando impedir Gorete de entrar no quarto, teve uma idéia. Pensou que era hora de mostrar ao mundo quem ele era, um grande pesquisador. Quando Gorete pôde, finalmente, abrir a porta, um pterodátilo voou. Antes de desmaiar, ela pôde ver o esqueleto de um tiranossauro no chão da peça. E disse:
– Credo, Cruz.... – antes de despencar em direção ao chão.
O motoboy de entregas ultra-especiais ouviu o barulhão vindo do apartamento de Godofredo:
– Hmmm. Acho que a voz vinha daquela porta ali...
Aproximou-se da porta bem a tempo de ver o vôo do pterodátilo voando e impedir a queda de Gorete com um movimento ágil. Waldirene, preocupada com o encontro com o padre, nem notou o bicho voando por ali. Só viu quando Gorete desfaleceu – e imaginou que houvesse desmaiado por causa da fome:
– Gorete! Gorete! Que tu tens? Ô, seu Godofredo! Negar um pedaço de pão é pecado! Ajuda eu levantar a Gorete, seu inútil! Não posso me atrasar, prometi ao Padre Almiro que chegaria bem antes da missa começar... – preocupava-se Waldirene.
Assim que recobra a consciência, ainda estirada no chão da sala, Gorete já começa a tagarelar:
– Olha, tenho uma bomba pra te contar! Pra isso tu tem tempo, ah se tem...
– Vai lá em cima que te deixo comer alguma coisa... – propõe Waldirene.
– Acho que é serviço demais...Tô vendo coisa, Waldirene... Até dinossauro acho que vi. Não fosse tu me dar esse chazinho de camomila... E o motoboy de entregas ultra-especiais me socorrer...
– Tu te deu bem com esse motoboy de entregas ultra-especiais maluco, né Goretinha?
– Pior... Ele tá me dando bola, mas tenho lá em casa o Lindomar... Ai Waldirene, também não é pra tanto.
Só agora o velho Godofredo se dá conta de que há um estranho perambulando sorrateiramente pela sua casa:
– O que é isso? Como ousa entrar no meu quarto sem bater, criatura desprezível?
Completamente transtornado, Godofredo sai atrás do bichinho de estimação e deixa a porta aberta:
– Onde diabos foi parar o meu mais importante bicho? Quero dizer, minha relíquia? – dizia, enquanto corria atrás do pterodátilo.
O motoboy de entregas ultra-especiais, que recém tinha tido a idéia de se tornar paleontólogo --- aquele cara que estuda dinos e outros bichos extintos --- e estava ao mesmo tempo preocupado com o desmaio de Gorete e com o vôo descontrolado do pterodátilo, resolveu tomar uma atitude na vida:
– Chega! Entrega NUNCA MAIS: olha, podem fazer um rateio aí de todas essas tralhas que eu tenho pra entregar. As cascas de laranja, os martelos, as pulgas, o disco do Cauby... só deixa a calcinha amarela comigo que essa eu vou dar pra Gorete, aqui... Foge comigo, Gorete. Sobe na minha moto e vamos ser felizes procurando FÓSSEIS no Nordeste!
– Mas na moto cabem doze meninos, seu moço?
– Gorete, lembra dos mandamentos sagrados! Trair o marido, mesmo doente, é pecado mortal...
– Na minha cabe! Uma vez eu transportei TREZE e sobrou espaço
– Então tá... Se sobrou espaço a gente leva o tadinho do Lindomar... Não dá para deixar sozinho...sem emprego, com gota e problema no figado!
– Gorete, por que o seu Godô tá berrando desse jeito? O que foi que roubaram dele?
Godofredo, ouvindo as palavras do motoboy de entregas ultra-especiais para Gorete, paralisou sua corrida atrás do bichinho. Voltou até o apartamento, abriu uma janela basculante, que era a senha de liberdade para o Gusmão, o pterodátilo que vivia com ele fazia décadas. Triste, muito triste, deitou ao lado do esqueleto de tiranossauro. Nunca mais Gorete, nunca mais a visão das coxas gordas e do corpo pré-histórico limpando o prédio. Adormeceu pensando em sua tristeza. Gorete ignorou a cena e virou-se para Waldirene:
– Waldirene, sua tansa, quem sabe tu não faz uma boa ação pra mim? Fica com o Lindomar e cuida do "morcego-galinha-gigante" do seu Godofredo.
– Esse motoboy de entregas ultra-especiais entrou lá, Gorete?
– Opa! Eu não entrei em lugar nenhum!
– Essa boba... Ai, Waldirene... Não complica que o motoboy de entregas ultra-especiais vai embora e me deixa com os meninos...
– Nada disso Gorete! Tu escolheu o Lindô e com ele vai morrer! Já que não vou mesmo conseguir ir à missa, convidarei o motoboy de entregas ultra-especiais pra jantar comigo...
– Santinha hein?!! – Gorete fica possessa – E me falava que homem pra entrar na tua casa só de batina... Agora tá flertando com o moço da moto...Amiga, hein?!
– Ah, mas não vou MESMO. Vem cá, me ajuda a juntar esses ossos de tiranossauro aí enquanto o velho tá dormindo. Cabe tudo na minha moto.
– Cabe? Mas e a minha carona e dos meninos? Isso é muito grande... Vou varrer esses ossos, dava até pra fazer sopa, mas é muito velho.
Godofredo acorda com o comentário despeitado. Viu que mexiam no seu esqueleto de estimação e entrou em pânico:
– Gorete! Corre aqui! Me ajuda com isto aqui!
– Tá... Ajudo...Ops... O velho tá berrando... – pensa – Já vou seu Godofredo!
Percebendo que ia se dar mal, o motoboy de entregas ultra-especiais ensaia uma saída estratégica pela esquerda:
– Ih, o velho acordou!! Melhor dar o fora! Vem comigo, Gorete? Pode trazer a tua DÚZIA, cabe tudo na moto.
– Vai..corre...eu vou varrer essa sujeira toda.
– Mas que ordinária essa empregada! Dizendo que amava o marido enfermo, os doze filhinhos e agora se manda pro nordeste com esse estranho que mal conheceu...
Godofredo dá de mão na cimitarra que descansava embaixo da janela:
– O que eu sugiro é que os meus adorados amiguinhos saiam já daqui...
– Não dá mais tempo: vem ou não vem? O véio agora até se grudou numa CIMITARRA. Eu não quero levar facada!
– Tá, e agora, rapaz? Agora que o velho tá fulo da vida comigo? Tu me contrata? Como eu fico? Preciso de grana, dinheiro, bufunfa...
Gorete e o motoboy de entregas ultra-especiais dão o fora. Chorando, desesperado, Godofredo adormece junto às fezes fósseis encontradas no Nepal.
Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.