HOME

INTRODUÇÃO

1. NEW JOURNALISM
1.1 As origens do New Journalism
1.2. Talese, Wolfe e Breslin e o surgimento do New Journalism
1.3. Capote e Mailer reforçam o time
1.4. Definições e Características

2. GONZO JOURNALISM
2.1. Hunter S. Thompson e as origens do Gonzo Journalism
2.2 O que é Gonzo Journalism?

3. GONZO JOURNALISM VS. NEW JOURNALISM
3.1. A Imersão e A Osmose
3.2. A Captação Participativa
3.3. Foco Narrativo
3.4. Sarcasmo e Sobriedade
3.5. Ficção e Não-ficção
3.6. O uso de drogas no Gonzo Journalism
3.7. A fuga do foco principal
3.8. Epígrafes, pseudônimos e ilustrações Gonzo

CONCLUSÃO

OBRAS CONSULTADAS



3. GONZO JOURNALISM
VS. NEW JOURNALISM


3.5. Ficção e Não-ficção

Uma das peculiaridades de estilo que mais diferencia o Gonzo Journalism do New Journalism é a sua permissividade quanto ao uso de ficção. Esta característica se manifesta, na verdade, através da ausência de um limite visível entre a ficção e a não-ficção. Jornalisticamente, isto pode ser considerado uma catástrofe, visto que um dos postulados clássicos do jornalismo é o de, através de trabalho meticuloso e refletido, “oferecer ao leitor a mais correta expressão dos fatos” (Manual da Redação da Folha de São Paulo, 2001, p.19)

Christine Othitis observa que "Thompson não diferencia o fato da ficção na maioria de sua obra. Ele deixa para o leitor decidir qual é qual" (1994a), o que põe em dúvida a veracidade de muitas das histórias descritas nos seus livros. Várias biografias sustentam que grande parte dos acontecimentos em The Course of Lono, por exemplo, jamais aconteceram (Othitis). Também é notório o costume que Thompson tinha de sabotar suas próprias matérias, a exemplo do ocorrido no episódio de The Death of Russell Chatham, descrito anteriormente neste trabalho.

A presença da ficção nos textos de Thompson também remete à sua própria personalidade. Amigos próximos como John Burton afirmam que "mentir é a coisa que ele faz melhor. E ele o faz com total calma e confiança" (Carroll, 1993, p.11). O próprio Thompson admite esta fraqueza, em Songs of the Doomed: "Mentiras, eram tudo mentiras. Eu não podia evitar" (1990, p.143). Christine Othitis sustenta que Thompson "apresenta o seu material de uma forma direta e crível; ele tem um talento para contar histórias, algumas das quais soam inacreditáveis e que realmente não podem ter sua veracidade garantida." (1994).

A princípio somos levados a concluir que a ausência de um discernimento entre a ficção e o fato desautoriza qualquer artigo Gonzo como uma peça jornalística mas isto pode não ser necessariamente verdadeiro. A questão central é: até que ponto a ausência deste limite distorce a visão que o leitor tem sobre o objeto central da reportagem?

Imaginemos que em Hell's Angels, por exemplo, depois de saber que os Angels costumavam portar todo o tipo de armas e ter assistido a inúmeras brigas de corrente entre os mais diversos membros da gangue, Thompson dedicasse um capítulo inteiro a falar sobre uma briga de facas. A menos que houvesse alguma regra de conduta que impedisse os Hell's Angels a lutarem de faca, esta "mentira" interferiria na compreensão da sua natureza violenta?

Da mesma forma, em Fear and Loathing in Las Vegas, precisamos mesmo saber se o jovem caroneiro das primeiras páginas do livro existiu de fato? O próprio Thompson não confirma nem desmente a veracidade deste episódio. Isto é realmente importante para a validade de sua matéria? A função do caroneiro no livro é a de representar um padrão de comportamento perfeitamente plausível e, ainda mais importante, verossímil para um jovem criado no interior dos Estados Unidos por volta de 1970. É curioso perceber que o caroneiro, apesar de jovem, é careta. Ou seja, ele recusa todas as ofertas de drogas e bebida feitas por Thompson e pelo seu advogado durante a viagem.

A sua existência factual é muito menos importante que o contraponto que ele cria: dois homens maduros com a cabeça cheia de drogas atravessando o deserto em Nevada em direção à cidade de Las Vegas encontram um garoto pedindo carona - o que poderia simbolizar a busca pela liberdade, o desprendimento. Este garoto, apesar de tudo, não confirma o estereótipo de consumidor de drogas e se mostra avesso mesmo a um simples gole de cerveja. Tendo isto em vista, é grande a probabilidade de o caroneiro jamais ter existido e ser apenas uma representação dos questionamentos do próprio Thompson sobre os rumos da geração pós-hippie.

Se Thompson tivesse optado por fazer apenas uma digressão interna falando sobre a geração pós-hippie (como ele de fato faz, durante todo o capítulo 8 do livro) se poderia dizer que, jornalisticamente, o texto estaria mais correto. Por outro lado, a ausência de toda a cena - desde as impressões de Thompson sobre o carona até os diálogos - deixaria não só a narrativa menos interessante como tornaria muito mais frio o tratamento que Thompson dispensaria a estes temas em referências futuras.

Sendo assim podemos concluir que a inserção da ficção no Gonzo Journalism não só contribui para a desenvoltura da narrativa como ainda fornece um nível de informação muito mais profundo do que uma reportagem tradicional, o que vem ao encontro da definição de Faulkner segundo a qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo. Também podemos perceber que a ficção é um elemento inserido de uma forma proposital e calculada, e não aleatória como poderia parecer num primeiro momento.

Entre os praticantes do New Journalism houve algumas discordâncias quanto ao caráter jornalístico de artigos produzidos por romancistas, como Capote, por exemplo, "que na vida real era mexeriqueiro e mentiroso" (Instituto Gutemberg, 1998). Ele próprio admitiu que tomava certas liberdades com os fatos quando escrevia suas reportagens. (Instituto Gutemberg)

Neste ponto também é interessante observar que a técnica na qual determinadas características de várias pessoas com histórias semelhantes pertencentes a um mesmo grupo social servem para construir apenas uma personagem também foi utilizada pelos praticantes do New Journalism e recebeu o nome de caracterização composta ou, simplesmente, “composição” (Instituto Gutemberg, 1998). Esta técnica, contudo, não se tornou exatamente popular entre a geração de Talese, Capote e Mailer justamente por abrir precedentes para críticas quanto à sua seriedade jornalística.

Gail Sheehy, uma das mais destacadas praticantes do New Journalism foi duramente criticada pelo uso da técnica em uma série de reportagens para a revista New York, onde entrevistou inúmeras prostitutas e gigolôs da cidade e as fundiu em uma só personagem, que apresentou como Sugarman. Mas o episódio que colocou a validade jornalística do gênero em xeque aconteceu na entrega do Prêmio Pulitzer de Jornalismo de 1981, qunado Janet Cooke, repórter do Washington Post sagrou-se vencedora com a história de Jimmy, um menino de oito anos viciado em heroína, que existia apenas na imaginação da jornalista. Descoberta a fraude, Cooke devolve o prêmio que fica com Teresa Carpenter.

Carpenter, contudo, também havia percorrido os duvidosos caminhos da composição no New Journalism ao escrever três matérias para a Village Voice contando a história de um garoto de programas, Dennis Sweeney, condenado pelo assassinado do deputado Allan K. Lowenstein, em 1980. Ainda que tivese entrevistado apenas os amigos e os advogados de Sweeney, Carpenter usou as informações que dispunha para construir um personagem do próprio Sweeney, a quem deu voz através de frases como "Sweeney nega", "o plano que ele imaginara" e "ele tinha a certeza de que" (Instituto Gutemberg, 1998).

Carpenter permaneceu premiada mas a credibilidade jornalística do gênero depois do episódio ficou irremediavelmente abalada.

Outra explicação para a confusão entre ficção e realidade sempre presente nos artigos Gonzo é o consumo de drogas pelo repórter, que será tratado nas próximas seções deste capítulo.

Já que os artigos Gonzo são escritos em primeira pessoa, o leitor fica com a sensação de enxergar os fatos através dos olhos do protagonista - que não deve ocultar do leitor nenhuma informação relevante à compreensão do todo. No caso, o uso de drogas.

Quando este protagonista encontra-se sob o efeito de substâncias que alteram a percepção da realidade, ele próprio torna-se incapaz de diferenciar a realidade da fantasia e, portanto, tornam-se perfeitamente aceitáveis as descrições de ataques de gigantescos morcegos em plena estrada e das conversas com pessoas com feições de répteis em salões cujos pisos estão cobertos de sangue - ainda que o leitor saiba que nada disso aconteceu, de fato.

Além do mais, se a confusão mental do protagonista é tamanha que ele acredita na veracidade da visão de uma cobra de neon flutuando no céu de Las Vegas, fica subentendido que outros eventos podem não ter se desenrolado exatamente da maneira como foram descritos pelo Gonzo Jornalista.

Se estivéssemos falando sobre o mérito jornalístico do Gonzo Journalism, este seria o ponto mais delicado da discussão. Este trabalho, entretanto, propõe-se apenas a discutir apenas a validade do Gonzo Journalism como gênero literário e não a sua relevância jornalística. Desta forma, a indefinição entre o que é realidade e o que é fantasia não é um ponto de vital importância para a discussão e pode ser tratado sem maior profundidade.

volta segue