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O fantástico mundo das coisas
Publicado originalmente na Revista Vista, em setembro de 2012

1. A Colher

Na forma de um garfo de luva levemente aconcheado, a colher é um ser que cresce para jamais sair do subalterno. Esquisitona e meio gótica desde pequena, na escola sofre bullying até dos bules, pires e xícaras. Quando atinge a idade adulta, invariavelmente é explorada com trabalho duro. As mais parrudas são designadas para servir os pratos; as mais mirradas são humilhadas no setor de sopas e sobremesas. Garfos e facas, que ficam sempre com a parte mais nobre da refeição, cagam a vida inteira na cabeça da coitada.

Só escapa desse terrível destino a colher que descamba pro submundo do crime, uma vez que é no underground que ela esmerilha todo o seu verdadeiro potencial. Numa prisão, desde que bem lapidada, uma colher pode funcionar como arma mortal. Nas mãos de dentistas charlatões, que não dispõem de verba suficiente para adquirir aquele espelhinho altamente tecnológico de ver os dentes lá do fundo, a colher pode virar um excelente comparsa em qualquer tipo de fraude.

Como regra fundamental, uma colher somente teme e respeita o profissional do ilusionismo, que tem essa mania irritante de decapitar, amassocar e mutilar cruelmente o inofensivo utensílio com seus passes de mágica. Isto transforma a categoria no único inimigo natural da colher que, se não for esperta, já está moldada na forma de um carro do Uri Geller a essa altura do campeonato.

2. O Polvo

O polvo teve problemas na infância: ia mal no colégio.

Não era nem que fosse burro, o bicho: é que tiravam ele afu, as outras crianças. Encrencavam, azucrinavam mesmo sua molúsquica vida de cefalópode. Bolinha de papel na sala de aula, carrinho no jogo de futebol (mesmo quando ele era o juiz) rasteira e cama de gato no recreio. Faziam troça pesada da vestimenta do polvo, e a mãe do polvo, pra complicar ainda mais a vida do polvo, mandava de lanche sanduíche de bolacha Maria com margarina pro polvo.

E a rapaziada se folgava no polvo.

Ele, pobre, nem chorar sabia: soltava tinta nos cantinhos e espedaçava seus tentáculos ao alho-e-óleo, no fogo. Rapaz, isso fica uma delícia de comer na praia, eu dizia. O polvo se escandalizava. Ê povinho fresco, o octopusso. E também de hábitos pra lá de bentônicos. Te lembra daquela vez que a gente nem precisou coçar os bolsos pra mascar perto de vinte anéis de lula à milanesa ouvindo as ondas, o rosto ardendo de sal y sol y arena, um dia de semana, em Santa Catarina? Ficou todo bravo, o polvo! Zurrou-me na orelha tal qual cabrita.

No meu resguardo de sempre, disse-lhum “me desculpe” em tom respeitoso. Houve um grande perdão. Depois, durante algum tempo, não houve mais nada. Então a gente ouviu um créque medonho de crânio de polvo estalando na paulada, mas isso foi só na mente que no quente não surtiu efeito: ainda não sou telecinético.

Me olhou, o polvo, sincrônico, como que respondendo ao som do impacto na cuca. Pensei “merda, pensei alto demais”. Mas que nada: abriu-me o córneo bico em motejantes gargalhadas, enquanto pra cima de mim avançava em vias de furtar-me um abraço. Cedi aos apelos do pandilha pensando exclusivamente na saúde de Olívia, sua ursa e namorada.

Tecnicamente, era caramêlo, Olívia, um caramelo mais queimado, um acobreado quase café, quase chocolate. Cheirava à cinamomo no inverno e à canela no verão. Apesar de ursa, era do verão, Olívia, no que divergia por completo do bisbórria do polvo. Com ele não tinha essa: gostava do frio e de usar casaco, queria que houvesse uma malha ferroviária ativa para alimentar-se de lagosta enquanto aprecia a paisagem rupestre e mais clubes de jazz na sua cidade para degustar Cohibas, Montecristos e Quai D’orsays a qualquer hora do dia.

Sofria de Febre dos Anos Trinta, o polvo. Ou talvez fosse maleita, vai saber. Nunca cheguei a descobrir. Escondeu as respostas a todas as perguntas numa mucuta, o polvo. Manja mucuta? Hmmm. Como é que eu vou te explicar? É uma espécie de picuá. Sabe picuá? Hmmmm.

Quase como uma capanga.

Sabe uma capanga?

Isso.

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