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Rodacine: sem cortes e sem limites
Publicado originalmente na Revista Aplauso, em maio de 2001, sob o título Pé na estrada

[Tavares]

Os primeiros raios de sol são sempre os mais difíceis de suportar. Pra quem recém acordou, apenas quinze minutos de exposição a luz do sol são suficientes para que se esteja completamente desperto. No alto da Medianeira as árvores filtram a luz do dia que recém começa, sete e quinze da manhã. Um pouco de neblina, nuvens cinza-claro por toda a abóbada celeste. Uma paisagem borrada e difusa. Parece que vai chover. Dizem que esse tipo de luz rende boas fotos. Vai saber. Não é uma das minhas especialidades.

Também não é acordar cedo num sábado, mas algumas concessões valem a pena. Hoje me aventuro indo à Tavares, cidadezinha incrustada no sul do nosso estado, meio do caminho entre Mostardas e São José do Norte. O que faz da viagem a Tavares uma aventura é um trecho de menos de trinta quilômetros de chão batido, conhecido popularmente como "Estrada do Inferno". Se fosse só uma estrada de chão batido não era nada. O caminho acidentado entre Mostardas e Tavares é um bom aperitivo para quem sempre sonhou ser piloto de rally: pedras soltas, bancos de areia fofa e profundas crateras. Dependendo da hora do dia em que se passa, não há nenhuma indicação de trilha. Espírito aventureiro. No hay camino. Estive lá há quatro anos. Eu sei o que nos espera.

Vou a Tavares acompanhando o Rodacine, projeto da Secretaria de Estado da Cultura, realizado pelo Instituto Estadual de Cinema/IECINE, juntamente com a Fundação de Cinema RS/ FUNDACINE e com patrocínio da CEEE e da Lei de Incentivo à Cultura. O Rodacine é um projeto de cinema itinerante, e tem a proposta de levar o cinema para localidades onde ele não mais existe ou onde nunca existiu. Os objetivos do projeto são bastante nobres: além de divulgar a mais recente produção cinematográfica nacional, o Rodacine se propõe a divertir comunidades que não possuem salas de cinema. Com isso esperam fomentar nessas populações o gosto pela sétima arte e incentivar a abertura de salas de cinema no interior. O Rodacine quer formar novos públicos e despertar a paixão adormecida nos antigos. Você imaginava que de 473 municípios do RS, pouco mais de 30 possuem sala de cinema? Nem eu. São 50 salas em Porto Alegre e 68 no interior.

Todos os filmes exibidos no projeto são brasileiros, e foram escolhidos pela curadora do projeto Fatimarlei Lunardeli, respeitando dois critérios básicos: possuir alguma relação com a região onde vai ser exibido e o valor histórico e educativo. Durante o primeiro semestre do ano, faziam parte do acervo os seguintes filmes: Mauá, o Rei do Brasil; Caminho dos Sonhos; O Auto da Compadecida; Castelo Rá-Tim-Bum; Bossa Nova e Policarpo Quaresma. O filme de Beto Brandt, "Ação entre Amigos" não teve muito sucesso em sua única sessão e portanto acabou ficando de fora do projeto. Para o segundo semestre, novidades: Mauá e O Auto da Compadecida estão deixando o projeto para dar espaço a "O Tronco", de João Batista de Andrade; "Anahy de las Misiones", do gaúcho Sérgio Silva e "Oriundi", de Ricardo Bravo.

Nada melhor do que a prática para compreender a realidade: em algumas horas acompanharei uma sessão de cinema em Tavares. Fiz todos os contatos com o Alexandre Pinho, Produtor Executivo do projeto. Minha idéia inicial era acompanhar todas as etapas do processo, desde a saída de Porto Alegre, a montagem do projetor e da tela, a sessão, a desmontagem e a volta. Eu queria viajar no próprio furgão do Rodacine, fazer parte da equipe durante um dia, viver plenamente a experiência. Infelizmente, o furgão só tem lugar para três pessoas e essas vagas já estavam preenchidas. Fica pra próxima. Eles saíram no começo da noite de sexta para fazer a primeira sessão só no outro dia, às três da tarde.

Minha editora havia tomado duas resoluções: iria para Tavares, já que havia conseguido uma carona pro outro dia de manhã. Era a fotógrafa que nos acompanharia nessa viagem pela Estrada do Inferno. Tudo que eu precisava fazer era ligar pra Flávia e marcar um horário para me pegar em casa. "Sete e meia tá bom?" Não era bem o que eu tinha em mente, mas enfim, tudo bem. Antes de dormir ainda conferi a previsão do tempo - chuva para toda região sul do estado - e rezei para que estivesse tudo errado. Durante a madrugada ouvi alguns pingos de chuva no telhado mas o sábado amanheceu enxuto. Nublado, mas enxuto. O Corsa roxo da Flávia estacionava na frente da minha casa perto das sete e meia. No caminho pro posto de gasolina paramos na casa da Paula e daí, pra estrada.

Assim que chegar em Tavares devo procurar pelo Pinho, o que vai ser no mínimo esquisito - não tenho a mínima idéia de como ele seja. Na nossa última conversa por telefone sexta à noite ele facilitou as coisas: "Não vai ser difícil nos achar. Nosso furgão vermelho é pouco discreto". Resolvi perguntar sobre as condições da estrada e descobri que quatro anos fizeram uma enorme diferença para a cidade. Depois sucessivos estados de sítio devido às péssimas condições de trânsito, finalmente o trecho horripilante entre Mostardas e Tavares havia sido asfaltado. A Estrada da Morte agora fazia parte apenas das minhas lembranças. O Pinho ainda completou "Se fosse do jeito que era, nem dava pra chegar com o furgão. O equipamento é muito delicado, onde tem estrada de chão não dá pra encarar".

Oito horas da manhã o sol já ia alto. As nuvens ficavam pra trás à medida que mergulhávamos cada vez mais fundo na estrada. Eu havia esquecido como essa viagem era aborrecida: quase 300 quilômetros praticamente em linha reta, com uma paisagem essencialmente repetitiva. Os diversos tons de verde no acostamento acostumam os olhos muito rápido. Lavouras de arroz, alguns poucos cavalos, centenas de quilômetros de cercas indicando que aquela imensidão pertence a alguém. Vários minutos sem avistar uma casa, sem avistar uma pessoa. No meio de hectares e mais hectares de terra, um trator parado, uma dúzia de vacas pretas, aglomeração de árvores. Perco os olhos no horizonte. Num paradouro uma placa diz "Rota 66".

Uma extensa faixa de asfalto perturba o ambiente com pouquíssimo tráfego. Flávia dirige com velocidade constante. Eu e Paula mantemo-nos acordados dentro do carro tomando mate, contando histórias sobre os tempos de faculdade e apontando animais mortos. Impressionante o número de animais mortos nessa estrada, em sua maioria cães e gambás. Dá pra saber pelo cheiro. Ao longe avistamos uma cabeça de vaca inteira, meio decomposta. Algumas moscas circundando. Talvez só pra quebrar a monotonia da estrada, a Paula quis colocar a carcaça dentro do carro. Achamos uma idéia ruim àquela hora da manhã.

Só lá pela altura de Palmares algumas mudanças começam a ser notadas. Uma bela paisagem de palmeiras desenha à nossa esquerda suas formas tortuosas. Troncos inclinados em todos os ângulos. Parece uma paisagem de Dali. Alguns segundos depois ela desapareceria, dando lugar a vastas formações de taquaras. As plantações de arroz aumentavam em número e pela primeira vez vimos um rebanho de ovelhas. Numa rápida passagem pela Subprefeitura do 4º Distrito ainda li, escrito na poeira duma camionete marrom: "Juliana e Pâmela".

As quatro horas de viagem pareciam oito. A redundância da paisagem só começou a ser quebrada quando avistamos dunas no horizonte e sentimos um leve cheio de maresia. A outrora temida Estrada do Inferno havia mesmo sumido por debaixo daquele asfalto novo. Sinais de obra ainda, um longo trecho com apenas meia pista. No acostamento alguns resquícios do antigo caminho infernal se faziam presentes: água empoçada cercada por pequenos cômoros de areia. Estávamos realmente próximos agora. A placa na entrada da cidade dizia que acabávamos de chegar no "paraíso entre a lagoa e o mar". Era perto do meio dia e antes de mais nada resolvemos almoçar.

À primeira vista, a avenida principal da cidade não era muito maior do que a rua onde moro, que de tão pequena ganhou a denominação de travessa no guia da cidade. A avenida principal de Tavares é uma travessa. Estacionamos na frente do Hotel e Restaurante, pedi três almoços para a mulher que atendia e fiquei conversando com a Flávia enquanto a Paula ia ao banheiro.

Realmente as coisas mudaram nos quatro anos que estive longe de Tavares. Lembro claramente que de todas as cidades que visitei, um dos lugares onde melhor comi foi justamente aquele hotelzinho, na época o único lugar que servia almoço na cidade. Salada e um lauto banquete de arroz, feijão, ovo frito, batata frita e bife, substituído por novas porções toda vez que uma das travessas ficava vazia. Quem nos servia era uma gorda e alegre senhora com feições alemãs que não pude identificar dessa vez. Na época o lugar era mais limpo do que agora e servia até sobremesa. Era isso que eu tinha em mente quando sugeri que almoçássemos ali. Ainda assim, o almoço não era ruim. A mesma salada, a mesma porção de arroz e feijão, agora com aipim frito e bolinhos de cebola, tudo pra acompanhar diversas fatias de carne de panela. Comi espantando as moscas e olhando pras paredes.

Cartazes de atrações musicais vindouras - um cantor nativista e um grupo chamado Brasil Tropical. Um adesivo da última campanha para a prefeitura do município de Sombrio e um mapa de Santa Catarina. "A senhora é de Santa Catarina?", pergunta Paula. "Por que, eu tenho sotaque de catarina?" responde a senhora. "Não, por causa do mapa". Ela abre um sorriso cheio de próteses e aponta um senhor barbudo lendo um jornal numa outra mesa "Meu marido é de lá". O senhor permanece lendo o jornal sem demonstrar muito interesse em levantar a cabeça para encarar os estrangeiros. Várias pessoas nos olham timidamente da porta da cozinha. Quando os olhamos, eles voltam pra dentro da peça.

Na outra parede, encostadas três televisões e dois rádios. O lugar vazio, além de nós apenas duas senhoras bastante idosas de cabelos muito longos ocupam uma mesa ao lado. Comiam com notável vontade ao lado de um menino pequeno que não parava quieto na cadeira. Ficaram bastante impressionadas pela nossa visão e ouviam atentamente as histórias que a Paula contava na mesa, mas quando foram perguntadas se iriam na sessão de cinema ficaram mudas. Algumas vezes ainda ouvi as duas dizerem para o menininho que as acompanhava para que ficasse quieto. Uma sorria, visivelmente envergonhada. A outra nos olhava por trás dos óculos com alguma desconfiança. Olhos de estranheza.

Resolvi ligar pro Pinho pra avisá-lo da nossa chegada. Nos encontramos na frente do hotel e ele me deu as últimas informações: a sessão seria no salão paroquial, ao lado da igreja. Ele estava almoçando com a equipe, mas depois rumariam diretamente pro salão paroquial pra finalizar a montagem dos equipamentos. Enquanto eles almoçavam, resolvemos explorar a cidade. Ainda vimos o furgão vermelho do Rodacine estacionado numa ruazinha paralela. Grande, colorido. Realmente, nada discreto.

Logo notamos que praticamente todas as casas tinham pesadas grades de ferro nas janelas. As marcas recentes de cimento mostravam que haviam sido instaladas há pouco. Um morador nos contou que isso se devia ao medo do assalto. "Agora que Tavares tem asfalto, a cidade virou passagem para São José do Norte e isso pode trazer assaltos para cá". Quando perguntei se já havia ocorrido algum assalto na cidade ele me disse que não "mas o pessoal tá se prevenindo". Engraçado que as casas tinham grades nas janelas mas mantinham as portas sempre escancaradas.

A existência em Tavares é bovina. São quase todos agricultores ou pescadores. Os 6800 habitantes encheriam pouco mais de um décimo de um estádio de futebol. A economia é baseada em grande parte no plantio de cebola e arroz e tem alguma expressão no camarão e na carne de ovelha. Dizem que a ovelha de Tavares tem um gosto diferente de qualquer outra carne de ovelha, mas ninguém sabe explicar porquê. Não provei. Em Tavares se trabalha de abril a julho com a cebola e depois fica-se sem ter o que fazer. Diversão? Não há. Eventualmente o Clube R.E. Tavarense promove campeonatos de futebol de várzea. Ao lado do Clube há um boteco sempre cheio, o que leva a crer que a cachaça é uma das poucas formas de distração no paraíso entre a lagoa e o mar. Não há muitos jovens na cidade, apenas crianças pequenas e adultos depois dos 40. Me sinto cada vez mais estranho.

Depois de conhecer um calçadão com bancos virados pras paredes e ler todas as inscrições do monumento com uma cuia de chimarrão na praça central, finalmente fomos ao salão paroquial pra encontrar a equipe do Rodacine. Além do Pinho, outras duas pessoas participam ativamente das viagens ao interior: o projetista Cirilo e a assistente de produção Márcia Pereira. O equipamento já estava todo montado, basicamente um projetor 35mm e um retificador de 150 quilos em cima de uma armação de madeira, apontado pra imensa tela branca no fundo da sala. Os últimos testes eram feitos na mesa de som enquanto as crianças, curiosas, começavam a chegar.

O lugar tinha cerca de 350 cadeiras, que seriam ocupadas em sua maioria por crianças vindas das escolas da cidade e localidades próximas. A prefeitura mandou alguns ônibus buscarem os interessados gratuitamente e instituiu uma contribuição espontânea de um real ou um quilo de alimento não perecível. Iniciativa da Secretária da Cidadania e Ação Social do Município, Carla Sander, que havia sido responsável pela vinda do Rodacine a Tavares. Na verdade essa visita foi uma concessão especial ao município de Tavares, porque o pedido havia sido feito logo no começo do ano e a cidade havia demonstrado um grande interesse em receber o projeto. "A gente fez uma exceção", diz Pinho. "Esse mês estávamos fazendo uma região mais próxima da serra, com Venâncio Aires, Dois Irmãos, Nova Hartz, Parobé..."

Tendo mais de sete mil espectadores em 20 cidades, eles só lembram de uma experiência ruim, em Estrela, quando o filme exibido foi "Ação entre amigos". "Não é que seja um filme ruim, mas tem muito palavrão. É caralho, porra e merda o tempo inteiro. Aí não teve outra: o salão lotado de famílias, de crianças pequenas, foi quinze minutos e o pessoal começou a ir embora", lembra Cirilo. Tavares seria uma das cidades presenteadas com duas sessões: uma às três e meia da tarde, outra às nove da noite. Na primeira sessão, o filme exibido seria o épico "Mauá, o Rei do Brasil". Na sessão noturna seria a vez de "Caminho dos Sonhos", adaptado de um conto de Moacir Scliar.

Por volta de três da tarde os ônibus começaram a chegar trazendo as pessoas de fora. Desciam do ônibus meio tímidas, banho tomado e roupa de domingo. Alguns traziam empunhada quase como se fosse um troféu a nota de um real, outros carregavam uma sacolinha de supermercado com arroz, polenta, feijão. Um questionário complementar ao Rodacine era distribuído: impressões sobre o filme exibido e desejo de que a experiência se repita.

O salão tomado de crianças. Descubro que as professoras fizeram com que a sessão de cinema contasse como presença em um dia normal de aula para que seus alunos comparecessem. Pois compareceram, em peso. Não demorou muito para que Alzira, a pipoqueira da cidade, estacionasse sua carrocinha na porta do Salão. "Cinema tem que ter pipoca", dizia, enquanto esquentava o óleo para estourar o milho. Cinqüenta centavos o saquinho da salgada. Cinqüenta também uma rapadurinha de amendoim que ela mesma fazia. As portas foram fechadas, as luzes apagadas. Na hora de ligar o projetor, um imprevisto acontece e o retificador que acende a lâmpada não liga. Criança é sempre mais cruel do que a gente pensa: uma sonora vaia ecoa pelo salão por alguns segundos até que os mais velhos as repreendem. No meio da confusão noto um homem gordinho de óculos, comendo pipocas enquanto observa atentamente o conserto improvisado do projetor. Pergunto: "É a primeira vez que o senhor vê cinema?" Ele ri com satisfação e enche a boca pra falar: "Não... Eu sou um cinéfilo". Prontamente ele se identifica como Jair Brum, e me apresenta a um outro homem de boné vermelho e bigode, sentado num caixote no fundo do salão.

"Esse cara aqui é que entende de cinema. Ele era projetista. Conta pra ele, Luís". Luís Francisco da Silveira hoje é agricultor e caminhoneiro, mas durante os anos 60 e 70 foi projetista nas saudosas sessões de cinema que aconteciam no Clube R.E. Tavarense. No começo ele se mostrou arredio como as senhoras do restaurante, mas os poucos começou a falar. Ele me disse que o responsável pelo aparecimento do cinema em Tavares nos anos 60 foi um homem conhecido como Antônio Padeiro, que veio de Santo Antônio da Patrulha com um projetor super-8. Mesmo a inexistência de luz elétrica em Tavares não foi um problema. "A gente usava gerador, bateria..." diz Luís.

Depois dele quem continuou o legado cinematográfico em Tavares foi Eugênio Alfaiate, de Palmares, que trazia filmes de bang-bang e do Teixeirinha pra cidade. "O maior sucesso de público em Tavares foi 'Coração de Luto', do Teixeirinha. A gente teve que fazer três sessões lá no Clube" finalizou, antes das luzes se apagarem novamente e o filme começar. Alguns minutos depois do início do filme Luís deixou a sala, inexplicavelmente. Jair, contudo, estava compenetrado. Olhos vidrados na tela, mão no queixo e expressão de seriedade. Por ser um filme de temática adulta, naturalmente as crianças não agüentaram muito tempo sentadas. Antes de completar a primeira hora de filme era possível ver as menorzinhas correndo de um lado pro outro, entrando e saindo do salão da igreja.

Final do filme, as luzes se acendem e as palmas tomam conta do salão. As crianças ganham as ruas correndo. Vou falar com Jair. Ele me diz que gostou do filme, mas que está ansioso para ver a reação do público à próxima sessão, pois "O caminho dos sonhos" é uma história que aborda a questão do racismo, segundo ele, muito presente em Tavares, devido a sua grande população de negros. Enquanto vamos saindo do salão paroquial, Jair ainda me faz um breve histórico da presença do cinema na cidade, passando por Zé Trindade e Steve McQueen e terminando numa enxurrada de filmes pornô. Jair lamenta que "O único filme com ideologia que passou aqui nessa época foi o 'Elas não usam black-tie'".

Antes de nos despedirmos ele conta uma história pitoresca, de uma das primeiras sessões de cinema em Tavares, no começo dos anos 50. Dizem que na época vivia na cidade um cidadão chamado Júlio Borba, que era um baixotinho de um metro e meio, no máximo. Bravo. Invocado que só. Pois numa das clássicas sessões no Clube Tavarense uma imagem de um touro bravo foi projetada na tela, deixando o povo todo apreensivo, como medo de que o animal resolvesse atacá-los. O Júlio, percebendo a situação, levantou no meio da sala e saiu correndo pra rua. Em questão de segundos entrava na sala à cavalo, com um laço na mão e gritando "Podem se acalmar. Deixa comigo que eu resolvo".

Naquela noite não ficaríamos para acompanhar a segunda sessão. Eu sempre digo que a viagem de volta dura menos tempo que a viagem de ida, até porque quando se está indo para algum lugar não se tem a noção da distância do caminho e na volta essa referência existe. De toda forma, não sei se essa regra se aplica no caminho de quase 300 quilômetros praticamente em linha reta até Tavares. Noite clara, a lua bonita. Vi uma luz muito forte no céu, maior que uma estela. Apareceu e desapareceu na mesma intensidade. A Flávia também viu mas não falamos muito sobre isso.

[Nova Hartz]

Na quarta-feira seguinte o Rodacine vai a Nova Hartz. Minha idéia é voltar à estrada, mas dessa vez junto com a equipe, no furgão vermelho nada discreto do Rodacine. Como a equipe é formada por três pessoas e o furgão tem lugar apenas para essas três pessoas, alguém vai ter que ceder o seu lugar para mim. "Sem problemas" diz o Pinho na outra ponta da linha. "Já garanti teu lugar pra ir pra Nova Hartz com a gente". Ótimo, penso. Uma boa oportunidade de acompanhar todas as etapas do processo, bem o que eu queria. Eu vou no furgão com ele e o Cirilo, a Márcia vai de carro.

Em Nova Hartz a princípio as coisas seriam tranqüilas. Apenas uma sessão, numa escola estadual, às sete da noite. Combinamos de nos encontrar na Usina do Gasômetro por volta de três da tarde. O Pinho estaria em alguma sala de reuniões votando em curtas que entraríam num outro projeto e o Cirilo chegaria mais tarde com o furgão. Dia meio nublado, tempo meio chuvoso. Por uma janela vi o furgão estacionando bem perto da chaminé. Conversei pouco com o Cirilo: a sessão das oito teria de ser atrasada. Estávamos esperando que o projetor ficasse pronto. Por conta do contratempo com a lâmpada em Tavares, o projetor teve que parar numa oficina para ser revisado, coisa que acontece com bastante freqüência. "Na verdade toda viagem abala o equipamento. O ideal seria que o equipamento passasse uma semana na estrada, depois uma semana na manutenção" diz Cirilo. "É um equipamento muito delicado, então só no trepidar do carro os parafusinhos já saem do lugar, os ajustes mais finos se perdem..." completa.

"Esse tipo de equipamento é feito pra estar numa sala de cinema, não pra estar viajando por aí que nem a gente faz. Mas como a gente é louco, a gente faz" diz o Pinho assim que chega. A previsão era que o projetor ficasse pronto às quatro horas, então vamos direto para a oficina. Conversando no caminho descobri que a segunda sessão de Tavares não havia sido muito estimulante. Mais vazia que a primeira, não empolgou muito. Cirilo dirige pela Protásio Alves enquanto Pinho liga para Nova Hartz acertando os últimos detalhes e avisando-lhes sobre o atraso, de aproximadamente uma hora.

A oficina fica numa rua perpendicular à Protásio, numa área bastante afastada do centro da cidade. O Seu Adão, responsável pelo conserto, é um dos poucos que oferece esse tipo de serviço em Porto Alegre. O Pinho me diz que "Ele é um apaixonado pelo cinema, por isso ele faz esse tipo de trabalho. E ele faz bem feito." Prum olhar cético, é uma oficina normal, cheia de ferramentas, prateleiras de madeira e correias sujas de graxa. Contudo, basta projetar um olhar mais demorado para começar a notar algumas particularidades daquele ambiente: lentes, ventoinhas, rolos de filme. Encontramos o Seu Adão ainda trabalhando nos últimos retoques do projetor. Figura simpática, ele. Franzino e bigodudo, a voz num tom amistoso, usando uma calça de abrigo e camiseta de manga curta apesar do ventinho frio que batia.

Seu Adão me mostra uma sala nos fundos da oficina, onde dividem o espaço dois imensos projetores de 35mm que estão sendo restaurados por ele. "Em breve estarão em alguma sala por aí", diz, sorrindo. O projetor do Rodacine estava quase pronto. Aparentemente o principal problema era no retificador, que transforma a corrente alternada trifásica em contínua. Um transformador queimado. Posso ver o complicadíssimo emaranhado de fios de diversas cores ligados em diversos pólos. Cirilo e Pinho trocam algum jargão técnico com o Seu Adão, eu fico perdido. Algumas modificações foram feitas. Testes finais, o projetor está perfeito. "Muito melhor do que antes" pro Cirilo. Hora de carregar o furgão.

Quando as portas se abrem as coisas não param de sair. Canos pra montar o quadro da tela, armações de madeira, caixas de som, suportes metálicos, rolos e rolos de filme, uma mesa de som e dúzias de latas, sacolas e sacos. Tarefa pra uns bons vinte minutos, isso numa previsão otimista. Soma-se a toda essa parafernália um retificador de 150 quilos e um projetor extremamente delicado de 25 mil reais. São necessárias pelo menos quatro pessoas para colocar cada aparelho dentro do furgão, usando sempre como rampa uma placa de compensado que enverga como se fosse de borracha quando recebe o peso em cima. Uma das modificações feitas recentemente nesses equipamentos foi a inclusão de rodinhas. "Antes era muito pior", diz Cirilo, com ênfase no "muito".

Com todo o equipamento devidamente acondicionado, o caminho é a estrada. Mas pra chegar na estrada é preciso passar por toda a extensão da rua da oficina, de paralelepípedo. Cirilo diz que "Aqui o negócio é andar a 10 por hora" pra não causar maiores danos ao equipamento. O Pinho quer comer alguma coisa antes de pegar a estrada, então fazemos uma parada rápida num posto de gasolina no caminho. A chuva começa a cair devagar e o dia vai escurecendo. São quase cinco horas da tarde mas parece noite fechada. A chuva vai apertando conforme vamos avançando pela estrada. Vou sentado no meio. Numa janela o Cirilo fuma, na outra o Pinho come um sanduíche.

Em todos os mapas que temos, não existem estradas chegando à Nova Hartz. A cidade é apenas um pontinho preto no meio do nada, entre Sapiranga e Dois Irmãos. Não sabemos como chegar lá. Pinho liga diversas vezes para Nova Hartz, tentando encontrar o melhor caminho. Vamos em direção à Sapiranga. A placa de saída para a cidade aparece na nossa frente alguns minutos depois: a estrada que se mostra é de chão batido. Nossa longa jornada está apenas começando.

A exemplo da rua da oficina do Seu Adão, Cirilo anda a dez por hora. Menos, agora. O ponteiro nem se mexe para registrar velocidade tão baixa. Uma pessoa que fosse caminhando na nossa frente chegaria primeiro. Continua a chover, agora mais fraco. Sapos começam a cruzar de um lado a outro da rua. Uma borracharia apareceu no meio do caminho. Perguntamos onde ficava a Escola Estadual Elvira Jost. "Cerca de três quilômetros em frente". Seguimos mais um bom pedaço praticamente pelo meio do mato sem achar nada, até que vimos as primeiras luzes da cidade. Uma mudança brusca de paisagem: chegamos ao asfalto da cidade. Seria essa entrada a Picada Hartz? O nome antigo da cidade era Picada Hartz, fazendo menção à picada que foi aberta no mato até o lugar onde se instalou a primeira família de imigrantes alemães que chegou lá. O nome da família? Hartz, é claro.

Não foi difícil achar a escola. Difícil foi manobrar o furgão para facilitar a retirada dos equipamentos. Nada de muito grave, mesmo assim, apenas uma maneira de evitar que a chuva caísse sobre o projetor e seus apetrechos. A escola estava em pleno funcionamento. Centenas de olhares curiosos lançaram-se sobre nós. Pouca gente conseguiu prestar atenção na aula depois da nossa chegada.

Me juntei a um grupo de estudantes que havia se reunido em volta do furgão. Estavam radiantes com a possibilidade de assistirem a uma sessão de cinema na sua cidade. Todos queriam ajudar de alguma forma, todos queriam fazer parte da magia do cinema. Em contraste com Tavares, essa era uma cidade de jovens. Apesar de ser uma sessão aberta, o grosso do público seria mesmo formado pelos alunos da escola. Notava-se claramente a produção de alguns. Gel no cabelo, unha pintada, jaqueta colorida. O ambiente envolvido pelos mais diferentes tipos de perfume. Um fervor adolescente no ar. Atmosfera divertida.

Cirilo e Pinho encontram Luciano Paulo Becker, responsável pela organização do evento em Nova Hartz. Juntos eles começam a discutir alternativas para posicionar o projetor e a tela, de forma a obter a melhor imagem possível para o maior número de pessoas. A idéia da escola era colocar o projetor em cima de um palco, mas Pinho achou melhor que se aproveitasse o espaço de outra forma. Planejamento feito, hora de desempacotar os presentes.

A única coisa que a cidade precisa fornecer à equipe é a alimentação, o abrigo (caso haja necessidade de um pernoite) e operários para ajudarem na montagem e desmontagem do equipamento. Então estavam lá, quatro operários e o Luciano para ajudar o Cirilo e o Pinho na montagem do equipamento, que deveria estar concluída em uma hora. Cirilo riu, conformado "Vai ser correria, mas vai ter que dar".

Primeiro é preciso tirar do furgão tudo que possa obstruir a passagem do projetor e do retificador: sacolas, canos, rolos de filme. Enquanto o Pinho ajuda o pessoal a tirar essas miudezas, o Cirilo vai montando os suportes pra colocar o projetor. Quando tudo saiu do caminho, é a vez de posicionar a rampa de madeira. É uma imagem que impressiona: quatro ou cinco barbados fazendo uma força tremenda pra controlar uma caixinha de oitenta centímetros de altura. E barbados dos grandes. Fico imaginando a dificuldade que deveria ser carregar o retificador sem as rodinhas. Elas só foram instaladas lá pela sexta sessão. Em Cidreira, Guaíba e Viamão, eles tiveram que subir três andares de escada com o equipamento.

Mas o trabalho apenas começou. Agora é preciso colocar o retificador e o projetor em cima dos suportes de madeira, na altura do peito dos operários. Se pra baixo todo santo ajuda, pra cima só com um trabalho de equipe bem coordenado. Mais uma vez, tudo certo. Agora que a força bruta dá espaço à precisão, a equipe se divide. Cirilo fica com o eletricista montando o quebra-cabeça com os fios coloridos enquanto Pinho posiciona a tela e as caixas de som. O eletricista de Nova Hartz era motivo de chacota dos outros operários. Chamavam-no de Sansão, e brincavam com o fato de ter cortado os cabelos recentemente. Diziam que tinha perdido sua força.

Talvez tivesse mesmo, pois quando foi mexer na alimentação elétrica da escola provocou um blecaute, fazendo com que gritos adolescentes pipocassem de todos os lados. Após alguns minutos na escuridão, a luz foi restabelecida e a montagem concluída sem maiores problemas. Enquanto os últimos testes de som e imagem eram feitos, conversei com o Luciano, que me disse que essa seria a primeira sessão de cinema para muitos ali. Em Nova Hartz as pessoas trabalham no setor calçadista. Duas das mais importantes empresas do setor em sede aqui: Ramarim e Via Marte. A agricultura que existe é apenas de subsistência e a maioria da população não tem condições de se deslocar até Sapiranga ou Novo Hamburgo para ir ao cinema. O filme para essa noite parecia muito apropriado: "O Caminho dos Sonhos", de Lucas Amberg, tem como protagonista um adolescente em uma cruzada contra o preconceito. Um bom filme para ser exibido a uma platéia formada basicamente por jovens, convenhamos.

Não fiquei surpreso, portanto, quando mais de 750 pessoas passaram a sessão inteira sem dar um pio, profundamente concentrados na história. Eu mesmo estava com os olhos grudados na tela. Durante a sessão o Cirilo fica do lado do projetor o tempo todo, fazendo pequenos ajustes na imagem e no som. Lá pela metade do filme ele sentou do meu lado e disse "Viu como esse filme segura o público?", antes de voltar a ajustar alguma coisa no projetor. Final do filme, sonoros aplausos. Automaticamente, os alunos levam as cadeiras de volta para suas respectivas salas e depois vão embora. Somem pelas portas com uma rapidez notável. Era tarde e de manhã muitos trabalham. Questão de cinco minutos para esvaziar toda a escola. Começa a desmontagem.

Basicamente é o mesmo processo da montagem, só que ao contrário. Cuidados redobrados toda vez que se maneja o retificador e o projetor. Um pouco menos de tensão, porque a tarefa já foi cumprida - o filme já foi exibido e foi um sucesso. Alguns operários reclamões mais tarde, está tudo em ordem. Tudo que nos resta é jantar no restaurante indicado pela prefeitura, depois pegar a estrada de volta para Porto Alegre. Era o fim da sessão número 31, na cidade de número 18. Apenas o começo de um projeto extraordinário, que deve continuar levando sessões de cinema pelo interior pelo menos até o final do ano.

"Quando eu cheguei e vi o espaço, a primeira coisa que eu pensei foi: 'não vai dar pra fazer'" disse o Pinho, agora na direção. Saímos da cidade por um caminho de asfalto, numa entrada que ficava apenas cem metros adiante da que tínhamos escolhido mais cedo. Todos os restaurantes indicados pela prefeitura estavam fechados, o que nos forçou a jantar em Porto Alegre. Para evitar futuros imprevistos como os ocorridos em Nova Hartz, Pinho vem redigindo o texto de um Manual de Produção para o Rodacine, que deverá ser distribuído entre os organizadores do projeto em cada município interessado.

Acabamos numa churrascaria em Porto Alegre que já estava quase fechando. Na verdade fomos os últimos clientes, depois de um certo tempo os únicos no recinto. Na janta Cirilo e Pinho contaram mais algumas histórias de experiências do Rodacine, apenas duas negativas. Além do episódio "Ação Entre Amigos" em Estrela, a má vontade de alguns operários já dificultou a montagem em alguns lugares. "Se a gente ficasse de braço cruzado mandando os caras carregarem as coisas até vá lá que os caras quisessem fazer corpo mole, mas a gente pega junto, sua junto, carrega peso pra cima e pra baixo e só pede que eles ajudem. Aí é sacanagem quando nem isso o pessoal quer fazer.", lamentou-se Cirilo.

Mas levando o cinema pro interior do Rio Grande dentro de um furgão vermelho acontece muita coisa. Sessões com mais de dois mil espectadores, consertos improvisados e edições imprevistas. O filme "Caminho dos Sonhos" perdeu cerca de cinco segundos por conta de um problema em uma sessão. "O filme trancou no projetor, aí eu tive que cortar um pedacinho do filme pra que isso não acontecesse outra vez. Quase não dá pra perceber, né?" pergunta Cirilo. Realmente, muita sorte. A cena picotada mostra apenas o personagem principal levantando-se de um tombo numa fonte. Nada que prejudique o filme. Outra história interessante aconteceu nas sessões em Cassino e Capão Novo, onde a CEEE teve que trocar o transformador para poder gerar a energia necessária para a exibição. "A gente precisava do trifásico" finaliza Pinho.

Lá pelas duas da manhã o furgão vermelho e nada discreto do Rodacine finalmente estacionava na frente da minha casa. Um dia de descanso e sexta-feira já vão pra estrada novamente. Destino: Dois Irmãos. Depois Estância Velha, Venâncio Aires, Parobé, Gravataí e Sarandi, isso só no mês de junho. É um trabalho mambembe, um trabalho de devoção e dedicação extraordinária. É trabalho físico e mental, trabalho de estradeiro, de aventureiro. Se eu entendesse alguma coisa de cinema, é um trabalho que eu gostaria de ter.

[Parobé]

Sexta-feira dia 15 tem sessão em Parobé. É a última oportunidade de acompanhar uma sessão do Rodacine antes do fechamento da revista. Ainda precisamos fazer algumas fotos importantes e Parobé parece ser ideal: é próxima a Porto Alegre (pouco mais de uma hora e meia de viagem) e também vai ser premiada com duas sessões, na Sociedade Cultural de Parobé. Combino com o fotógrafo e no fim da tarde pegamos a estrada. Não tivemos como chegar na sessão das três. A segunda sessão começa às sete e meia.

Sexta-feira fim de tarde é sinônimo de estrada congestionada. Dito e feito: logo na entrada de Canoas o trânsito fica lento. A previsão de frio no final de semana não parece ter intimidado os veranistas fora de época, que tem se aproveitado do veranico de junho no estado. Estrada realmente movimentada pra uma sexta-feira que sucede um feriado. O trânsito não diminui nem quando pegamos o caminho pra serra. Descobrimos que pegamos o caminho errado.

Poucas placas nesse trecho dificultam a tarefa de encontrar a cidade. Pra chegar em Parobé nem é tão difícil: basta pegar o mesmo caminho para Nova Hartz e seguir em direção a Taquara. Poucos quilômetros depois da entrada para Nova Hartz avistamos Parobé. Na verdade não há nenhuma indicação de que esta cidade seja Parobé, mas é o que tudo indica. Precisamos entrar na cidade pra perguntar onde estamos, mas não conseguimos sequer entrar na cidade. Um trecho de trânsito intenso, com caminhões e ônibus intermunicipais. Nenhuma placa. Chegamos até aqui e agora não conseguimos entrar na cidade.

Decidimos entrar na primeira oportunidade à direita. A exemplo de Nova Hartz, novamente, a borracharia nos salva.

"Aqui é Parobé?"
"Sim"
"Onde fica a Sociedade Cultural de Parobé?"
"..."
"Onde vai ter cinema hoje?"
"Ah, o cinema! Isso é lá no centro."
"E como faz pra chegar lá?"

Pareceu um pouco complicado. Mais um trecho daquela estrada sem indicações até uma quase imperceptível entrada do outro lado da via. Um tímido pórtico nos dá as boas vindas: chegamos finalmente a Parobé. Tento abordar uma senhora para perguntar direções, mas ela continua caminhando sem nem olhar pra dentro do carro. Mais adiante um rapaz fardado pra jogar futebol nos diz que estamos quase lá.

Viramos na próxima esquina e já vimos no topo da lomba o furgão vermelho estacionado em frente a um belíssimo salão. Encontro Cirilo um tanto desolado, que logo me diz "Tenho más notícias pra te dar. A sessão foi cancelada." enquanto abre uma caixa da qual retira uma lâmpada totalmente negra. "Queimou a lâmpada do projetor", disse outra vez, visivelmente decepcionado. "Mais de mil pessoas aí dentro, cara. Tivemos que cancelar a sessão com mais de mil pessoas aí dentro..." dizia, enquanto, girava a lâmpada de 4mil watts e cinco mil reais queimada, dentro da caixa. "Pior de tudo foi que a lâmpada funcionou sem nenhum problema em todos os testes que a gente fez. Tava tudo beleza. Aí na hora que era pra ser pra valer eu senti que a luz não tava normal e comecei a sentir um cheiro de queimado. Fui abrindo o projetor pra ver o que era, já suspeitando, e quando abri era aquilo mesmo. Falei pro Pinho e vim aqui pra fora. Não tive coragem de dar a notícia." ainda terminou.

Entramos no salão da Sociedade Cultural de Parobé: um lugar lindo. Uma sala de espetáculos com um amplo espaço e um belo palco onde a tela seria estendida. "Hoje ia dar pra usar a tela inteira" comentou Cirilo. Pinho e Márcia prometem trazer o Rodacine em uma próxima oportunidade e desculpam-se com os organizadores da cidade, que se mostraram compreensivos. Visivelmente frustrado, Pinho ainda comentou que o projeto não vai parar. "Agora nós vamos comprar uma lâmpada usada de 2mil watts, quer dizer, vamos funcionar com a metade da capacidade até que a gente consiga uma lâmpada nova. Essa lâmpada não existe aqui, a gente vai ter que encomendar da Alemanha e deve demorar de uma semana a quinze dias pra chegar." Os problemas não acabaram por aí: Pinho e Cirilo tiveram que desmontar todo o equipamento sozinhos, descendo três lances de escadas.

Acompanhamos o furgão pela estrada na viagem de volta. O fotógrafo, Cristiano, ia tirando algumas fotos do veículo em movimento. Chegando em Porto Alegre, o furgão do Rodacine se dirige para o Centro Cenotécnico, um gigantesco galpão na Voluntários da Pátria, que abriga o equipamento do projeto. "Quando a gente viaja no dia seguinte, a gente não descarrega o furgão, mas toda vez que vamos ficar parados mais de dois dias, é sempre essa mesma função", conta o Pinho com alguns canos embaixo do braço. Na sala do Rodacine, cartazes de todos os filmes do projeto, uma tela montada em frente a três fileiras de cadeiras e outras parafernálias. Quase no final da correria, misteriosamente a luz da sala se apaga. Na hora não deu pra resolver o problema. Não era mesmo o dia de sorte das lâmpadas.

Imprevistos desse tipo são corriqueiros, mas isso porque esse é um projeto novo, que está apenas engatinhando. Nessa primeira fase do Rodacine, toda a equipe está descobrindo como as coisas acontecem na prática, e isso tem trazido diversas surpresas. Segundo a curadora Fatimarlei Lunardeli, "na parte técnica, por exemplo, a rubrica 'manutenção do equipamento' era reduzidíssima, só com R$ 500,00 e foi a que mais implicou em gastos, porque os equipamentos têm exigido uma série imprevista de adaptações, já que é muito delicado e não é feito - normalmente - pra essa loucura de ficar sendo montado e desmontado o tempo todo".

No fim das contas, a convivência com os envolvidos no Projeto Rodacine me deu uma certeza: pode até ser que existam outras pessoas para fazer esse trabalho, mas duvido que sejam tão dedicadas. O Rodacine é um projeto de amor: eles correm os riscos e vivem a aventura. Trabalham duro e literalmente suam a camiseta. Dormem pouco, comem tarde e rodam centenas e centenas de quilômetros vivendo em uma cabinezinha de três lugares. Eles têm verdadeira paixão pelo que fazem e se dispõem a empregar 100% do seu tempo para viabilizar um projeto que leva um pouco de magia a milhares de gaúchos que não tem o privilégio de viver em uma cidade com uma sala de cinema. Parece pouco? Talvez para você, mas tem pelo menos sete mil gaúchos que pensam diferente. Eu sou um deles.

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1999-2016