índice

Prosopopeia Estival
Publicado originalmente no jornal Zero Hora, em janeiro de 2006

Aquilo que eu considerara loucura no mais-que-perfeito passado em que nos conhecemos empenhou-se, de algum modo, em fazer um sentido estupendo ao longo dos tempos e, depois de algum tempo, amornou-se numa constância tão confortável que passou a ser também minha loucura, de modo que já não me parecia nada estranho que, naquele verão em que o rosa era a cor do verão, estivéssemos descalços e em trajes de banho, mascando, aos bocados, saborosas porções de crustáceos decapitados y frigidos à moda dos mais faustosos balneários da costa, sentados no meio de um pasto seco de tanto sol distante um sexto de légua da Belina preta que piscava, em toda sua glória, a maior parte do seu conjunto luminoso, em vias de alertar os demais transeuntes da via sobre a sua lamentável incapacidade em manter-se móvel naquele instante.

Era sempre no verão que Luísa vinha nos visitar, mas dessa vez - a primeira em dezoito anos -, resolvemos, eu e Olívia, irmos nós, afinal de contas, a Belina preta vinha nos olhando de lastimoso revesgueio desde maio, quando tomamos táxi e avião, nem dissemos tchau e ficamos uma semana na Serra esculpindo bezoares como quem come carneiros no café da manhã - e de fato, comíamos carneiros no café da manhã: leite-e-queijos de carneiro, geléia de carneiro, pão-de-lã, tudo crespinho, sedoso e morno como o bom carneiro sabe ser - enquanto em casa, acordando aborrecida pelo orvalho, a Belina lutava sacrificosamente para preservar alguma energia pulsando no dínamo que, parado, esfriava seu coração-de-lata.

Nesse mesmo verão em que fomos visitar Luísa, uma ursa parda y peluda pulou na piscina do quintal de casa - que Luísa estranhava os pátios - e ficou lá, semicerrando as vistas enquanto apreciava o horizonte, bracinho esquerdo apoiado na borda, um robusto botão de gardênia adornando uma das orelhas e muitos rubros ramos de fotínias cravados às unhas pelos talos.

Nós fomos à praia.

À sombra, com os lábios salgodóceos de mar e manteiga-de-cacau, e cobertas de sardas e areia, Luísa e Olívia liam, uma para a outra, notícias em velhos jornais sobre homens que suaram toda a água do corpo, ou que beberam toda a água do mundo, e riam graciosamente durante toda uma série sobre as prisões de gelo e as formidáveis algazarras que os internos promoviam sempre que a primavera ia chegando às suas últimas quinzenas.

Aquele verão foi lindo.

Afundamos gôndolas, mordiscamos vôngoles e devoramos polvos crocantes como rubicundos gringos. Cozidos do sol, acalmamos as peles em rios de calamina e cânfora. Alimentamos os quatis com caramelos de framboesa, iscas de peixe e batata-frita, além de algumas outras variedades de piriris que, supostamente, casavam perfeitamente com os frisantes de maior prestígio da temporada.

No último dia, presenteei Luísa com uma canga, mas ela me mandou pro Congo de tanta raiva e cavou um buraco bem fundo na areia para me enterrar.

Luísa nasceu tão Luís que até chamamos de Afonso pra não confundir.

Mas mesmo assim eu confundo.

Droga.

índice



1999-2016