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Pasfundo Calipígia
Publicado originalmente na edição 39 da Revista Piauí, em dezembro de 2009
16h04 de 26 de outubro Assim que cheguei à rodoviária de Porto Alegre, comprei um FRASCO de água de meio litro e a novidade BALISTICA mais estranha que pude localizar no balcão: um caramelo de MENTA com CREME. Enquanto esperava pela chegada do meu colega de viagem, ia saboreando a iguaria e revisando a única página de anotações do meu caderninho onde havia compilado dicas sobre a cidade à qual me dirigia, Passo Fundo. “Boka – maionese caseira”, “Estátua do Teixerinha”, “Praça da Cuia” e “Vermelhão da Serra” faziam parte da lista, bem como algumas palavras-chave como “moto-contínuo”, “cinamomo” e “Prodir”.
16h20 Começava a cozinhar meus pensamentos, uma vontade de tostar os bigodes pré-viagem, quando Daniel Pellizzari (AKA Mojo AKA Mojids), escritor bissexto, pai de dois & tradutor internacionalmente reverenciado, FRATUROU meu campo de visão. A essa altura do campeonato já sofria do GRAVE frio dos medos, temendo que meu COMPADRE tencionasse aplicar-me um fabuloso TIM MAIA e simplesmente não comparecesse à plataforma de embarque naquela tarde. Pensando com PRATICIDADE, eu havia efetuado sozinho a compra das duas passagens do nosso VOO[*], que partiria precisamente às 16h30 da capital gaúcha. Notei que usávamos o mesmo modelo (e cor) de casaco e o mesmo modelo (e cor) de calça. Experimentei leve regozijo ao detectar manifestação de DEZENOVENOVENTA WEAR in full effect.
16h38 Conforme previsto, nosso ônibus (ref. cit., Voo) efetivamente deixou a rodoviária de Porto Alegre às 16h30. Não fazia frio, mas a maioria das pessoas enroscou-se num cobertorzinho amigo e cobriu sua janela com a cortina. Enquanto a manobra coletiva ia sendo executada, os alto-falantes despejavam uma versão midi de Guantanamera na rapaziada sonolenta.
16h46 Em contrapartida, eu e Mojids engatamos num papo celíaco pesado, lascando um trololó desmedido cheio de grandiloquências e outras mumunhas características para cima do cosmos. Na pauta, colesterol alto, intolerância ao glúten, poder transfigurador da literatura, videogame, anatomia, Michel Laub, constrição, barba, dinheiro, futuro. Percebi alguns protestos velados: loirinhas torcendo o nariz, senhores suspirando firme, velhotas atravessando uma carranca. Mojids não percebeu nada. Decerto por ser muito puro, muito bom, sem malícia.
17h04 Meio irritante essa mania que muitas linhas de ônibus de longa distância têm de exibir um filme em todo voo (ref. cit., Asterisco) com duração superior a duas horas. Deixar a curadoria do evento a cargo dos motoristas sempre é uma louca aventura. Não consegui pegar o título dessa fita que exibiram durante a viagem a Passo Fundo, mas chamava a atenção o fato de ser uma versão ao mesmo tempo dublada e com legenda – sendo que as escolhas de palavras e construções frasais eram completamente diferentes entre si. Ouvia-se alguém dizendo “Estou com saudade” e na legenda metiam um “Sinto sua falta”. Sobre isso lembro ainda que era uma fita de super-heróis voltada para o público jovem, ou seja: atores adolescentes e senso de humor chocante, na proposta de quebrar tabu e causar furor. Pareceu ruim.
18h04 Viagens de ônibus são largamente superiores às de avião por inúmeros motivos, mas talvez o mais flagrante seja o fator paisagem. Pode me chamar de hippie se quiser, mas não tem nada melhor do que passar quatro horas olhando pela janela enquanto as cidades vão se esfarelando à medida que o campo aberto engole tudo, inclemente. Se tu ficares sem pilha no mp3 Player, no computador ou no DS no meio de um voo de quatro horas, tens um grande problema. Se te acontece isso numa viagem de bus, a paisagem sempre resolve. Nesse caso, a visão do pampa bravio com seus pagos infinitos, pingos indomáveis e exércitos de ruminantes sortidos é ainda mais significativa e colabora na apuração de uma espécie de senso guasca que será de suma importância para maior compreensão e usufruto de toda a experiência.
19h25 O dia já começava a esmorecer quando avistei de soslaio uma enorme construção mista. Havia elementos de ginásio, silo e galpão nesse edifício pintado de grená e branco, em destaque total numa colina gigante. Fazia agora algum tempo que não aparecia nada muito impressionante do ponto de vista arquitetônico na paisagem, de modo que aquela munaia me prendeu a atenção. Conforme o ônibus foi se aproximando, pude ler com mais clareza o que diziam as letras na sua fachada: Centro Recreativo e Esportivo Nunca Pensei. Mesmo não levando muita fé que havia acabado de ler isso que acabei de escrever, só a mera ideia de que pudesse mesmo existir um centro recreativo e esportivo chamado Nunca Pensei me pareceu boa o suficiente, de modo que a anotei para usar de alguma maneira.
20h20 Usando habilidade matemática elementar, deduzi que estávamos chegando a Passo Fundo quando vi que eram oito e meia no meu relógio – e dez minutos mais cedo no mundo real. Num impulso pavlóvico, logo após consultar as horas tentei usar um aplicativo no meu celular para acessar meus e-mails, algo que costumo fazer com bastante frequência quando estou fora de casa. Imediatamente lembrei que havia descoberto por acaso na noite passada que o aplicativo havia parado de funcionar. Do nada. Sem mais nem menos. Aliás, era pior: ele havia cometido suicídio: desaparecera (bom tempo, o mais-que-perfeito) do menu de opções por completo e não podia ser encontrado em nenhum outro lugar. Lembro-me de na hora ter pensado: Ah, tudo bem, nunca preciso dele mesmo, não é justamente agora que vou precisar. Mas prestes a encarar o desconhecido em Passo Fundo, a frase ricocheteou na caixa craniana como uma espécie de presságio sinistro.
20h23 Havia mais um fator problemático na equação: o único voo (ref. cit., Asterisco) que poderíamos pegar para Passo Fundo naquela tarde fazia, na verdade, a linha Porto Alegre-Erechim e não tínhamos lá muita certeza de quando deveríamos saltar da condução. Para piorar, o motora não fazia muita questão de verbalizar os destinos toda vez que parava – o que também não era problema assim tão grave, já que antes de Passo Fundo o ônibus parou pouco, e só numas bibocas. Mesmo assim, começava a se desenhar uma leve tensão no ar. A apreensão já vinha rolando e há uns bons quilômetros. Especialmente porque havíamos comido mal no almoço e agora tínhamos fome. Muita fome.
20h25 Quando enxerguei um homem de lata no meio de uma praça, tive a certeza de que aquela só podia ser a Estátua do Teixeirinha (salvadora) e que estávamos mesmo em Passo Fundo. Nem precisei olhar muito para ter certeza de que era ela. Era bem como o amigo Xincarúque me havia descrito por e-mail uns dias antes: Feita com sucata (te liga que tem uma rodinha bem no cu dele). Só para me certificar, chamei um check that ass esperto assim que o ônibus passou. Havia mesmo uma rodinha lá. Uma engrenagem para ser mais exato. Preciosismo técnico à parte: era ela. Estávamos lá.
20h33 Descemos do ônibus procurando por outras pessoas nos procurando. Não parecia haver ninguém. Enquanto as malas de outros passageiros iam sendo sacadas do bagageiro, ficamos esperando que aparecesse alguém para nos guiar até um carro oficial ou coisa do tipo. Mas não aconteceu nada. Friozito na barriga. Antes de o motorista voltar para o ônibus e seguir viagem, ainda perguntamos: “Aqui é Passo Fundo?” A resposta afirmativa não foi tranquilizante. Mojids esbugalha os olhos, abro um sorriso e bufo. Somos dominados por moderado horror.
20h36 Quando o ônibus zarpou em direção ao seu destino final (att. ref., Erechim), tentamos minimizar o estrago lembrando dos e-mails que trocamos com a organização dias antes. Tanto eu quanto Mojids havíamos recebido a confirmação de que nos buscariam na rodoviária às 19h45, apesar de havermos insistido que só chegaríamos às 20h30. Decerto desistiram de esperar e foram embora para voltar mais tarde. Ou quem sabe confundiram os horários e viriam nos pegar só às 20h45? Decidimos esperar mais uns minutos. Se não acontecesse nada até as 20h45, aí tomaríamos alguma providência.
20h39 Descobrimos que não havia nenhum restaurante ou lanchonete abertos e nem nada que parecesse vender comida num raio de 500 metros da rodoviária.
20h41 Tem gente que se orgulha de dizer que é para-raio de maluco. Os yankees chamam de freak magnet. O tipo de gente que costuma atrair todo tipo de gente esquisita, manja? Eu não sou assim. Apesar disso, foi botar os pés na Rodoviária de Passo Fundo que me apareceu um nanico de bermuda e camiseta, barba malfeita e ferida na cara, tossindo feito um cachorro véio, sem contudo arremessar longe o cigarro que trazia preso aos lábios. Baba forte, macanuda. Temendo pela Gripe porcina, aka Gripe A (que foi hit na região este inverno), Mojids deu-lhe as costas. Eu tentei: não consegui. Enquanto o bugre tentava me achacar alguma moeda, contava histórias sobre como haviam batido na sua índia véia – que, nesse caso, era mesmo uma índia velha – e como fazia, sei lá, seis horas que ele não comia. Acabei conseguindo me desvencilhar dizendo que fazia oito que eu não comia – que, nesse caso, era mesmo verdade. Segundos depois, passou um cara com dois bonés na cabeça e foi direto a uma lixeira explorar as possibilidades. Crack no olho, na medula e na alma foi o que pensei.
21h03 Nove horas passadas tivemos certeza que ninguém vinha mesmo nos buscar. Ficou ainda pior quando nos demos conta de que nenhum dos dois sabia o nome do hotel onde ficaríamos hospedados. Também não tínhamos o telefone de nenhuma pessoa da organização. Com o agravante que nem podíamos acessar nossos e-mails para tentar resgatar alguma dessas informações no meu celular (ref. cit., Presságio sinistro). Para compensar nosso gritante amadorismo, botamos a massa cinzenta para funcionar, tentando lembrar de pessoas que talvez estivessem em Passo Fundo e pudessem nos ajudar. Duas ou três nos ocorreram de pronto, mas (claro) não tínhamos o telefone de nenhuma delas. Então me lembrei do Zani, meu colega de faculdade e um dos mais caros compadres. Hoje o Zani funciona como gerente de uma patrocinadora de vulto da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Se tinha alguém que podia nos ajudar, era o Zani.
21h05 O telefone tocou um bom par de vezes e, quando finalmente consegui que me atendesse, Zani estava quase entrando no palco para receber um prêmio em nome do mecenas que representava. Não podia fazer muita coisa, mas pelo menos nos deu o nome do hotel onde ele e vários outros gaúchos estavam hospedados. Já era alguma coisa.
21h07 Em breve reunião de cúpula com Mojids, decidimos esperar mais dez minutos e, se ninguém aparecesse mesmo, pegar um táxi para o hotel indicado pelo Zani. Provavelmente estaríamos hospedados lá – e se não estivéssemos, pelo menos poderíamos acessar a internet ou tentar descolar o telefone de alguém da organização com a rapaziada da recepção.
21h11min30 Como quatro minutos e meio depois nada aconteceu – e nem deu pinta de que aconteceria nos próximos trinta -, decidimos pegar um táxi. O taxista não quis ligar o taxímetro. Prevendo o atolo, tentei dissuadi-lo de uma eventual maracutaia dizendo que teria de pegar um táxi na volta para a rodoviária, e se o preço estivesse errado, ficaria pequeno para o seu lado. Em vez de se acovardar ou titubear, nosso chofer começou a discorrer sobre Passo Fundo, falando sobre os pontos fortes da cidade – mais notadamente a agricultura, a universidade e o sistema de saúde – cuja imagem teria ficado abalada depois da onda de mortes causadas pela gripe porcina na região. Nesse ponto, ele fez uma observação assaz pertinente: o número de mortes por lá teria sido tão expressivo porque várias das vítimas eram de cidades vizinhas, cujos habitantes foram buscar atendimento nos hospitais de Passo Fundo, como estão acostumados a fazer.
21h19 San Silvestre era o nome do hotel que o Zani nos havia indicado e parecia mesmo ficar a uns 10 pilas de distância da rodoviária. Admirei a boa-fé do taxista e despedi-me com risos. Trinta segundos depois, no balcão, nos informaram que não havia reservas em nossos nomes. Hora de botar em prática o plano b: descolar o telefone de alguém da organização e perguntar onde estávamos hospedados.
21h20 Antes que pudéssemos implementar o plano b, o Zani já tinha exercido sua magia secreta e, em muito breve, haveria um carro partindo em nossa direção e alguém ligando com instruções. Enquanto nosso motorista (que, eu saberia mais tarde, muito se assemelhava ao saudoso Rodney Dangerfield) não chegava, matamos mais um tempo sentados no lobby tecendo hipóteses e sentindo cada vez mais fome.
21h34 Finalmente chegamos ao Itatiaia, nosso verdadeiro hotel. Foi o check-in mais rápido da minha vida: perguntaram nossos nomes, nos deram nossos cartões, os kits de boas-vindas da Jornada e nos desejaram uma boa estada. Por sinal: quarto individual > mundo.
21h36 O elevador tinha uma bizarrice peculiar: era preciso enfiar o cartão do quarto numa fenda para habilitar o painel de controle. Uma vez habilitado, o painel permitia apenas um toque. E esse toque só era computado se fosse no andar onde ficava o quarto que aquele cartão abria. Isso quer dizer que, se pessoas de andares diferentes estivessem no mesmo elevador, cada uma delas teria de inserir seu cartão na fenda e apertar no seu andar para que ele fizesse, obediente, o percurso. Como eu e Mojids estávamos no mesmo andar, não saberíamos disso até bem mais tarde. Aliás, perigamos sair de lá sem jamais ter essa verdade revelada. Dá o que pensar. Aristóteles teria pensado, mas ele nunca andou de elevador, com ou sem fenda de habilitação.
21h38 Já no quarto, um enorme alívio: cama grande, tevê a cabo, banheiro bom. No kit de boas-vindas, crachá (= sentido da vida), mapas, a programação completa do evento e impressos variados relacionados de alguma forma à Universidade de Passo Fundo – que se escreve upf, mas se pronuncia u-pê-éfe -, onde acontecem todas as atividades da Jornada, exceto as refeições, para as quais havia um pequeno envelope contendo vales que podiam ser descontados num tal Clube Comercial. Tudo isso vinha dentro de uma sacola de pano estilo estudante de história, com decalque alusivo ao acontecimento. O hotel também havia acrescentado ao bolo o seu próprio kit de boas-vindas, consistindo em um Sonho de Valsa e um cartãozinho com uma mensagem simpática. Cego de fome que estava, atraquei-me com o invólucro de celofane e joguei o chocolate quase inteiro garganta abaixo. Quando encontrei Mojids no corredor, a primeira pergunta que ele me fez foi: “Tu também comeu o bombom?”
22h14 Antes de, enfim, fazer nossa primeira refeição em Passo Fundo, ainda teríamos de percorrer breve via-crúcis indo até a u-pê-éfe confraternizar com nossas anfitriãs (uma boa dezena de empolgadas, bonachonas e divertidas professorinhas de letras) e ouvir milhões de desculpas pelo vacilo rodoviário. Fora isso, breve banda pelas tendas e encontro fatal com o Zani. Conversamos com o lombardo durante um bom tempo até que finalmente foi anunciada a partida do primeiro ônibus oficial da Jornada em direção ao Clube Comercial. Em poucos minutos, nossa ansiadíssima primeira janta em solo passo-fundense – que só foi mesmo rolar depois das onze de la noche.
23h08 Nos haviam dito que o rango no Clube Comercial era de primeiríssima, mas também haviam nos pregado muita peça, nos feito muita troça. Quando perguntei se haveria algum prato que fosse bom para o colesterol, por exemplo, me responderam: “Sim, bacon.” Não sabia em quem confiar. Para minha sorte, era mesmo classe o grude no Comercial. Abri os trabalhos com uma saladinha de alface, queijo branco, peito de peru e champignon (acho que chamava “salada selvagem” ou algo assim). Emendei com um peixinho alegria ao molho de mostarda com mel. Para felicidade geral da nação, o tíquete ainda dava direito a um cálice (bem dadivoso, quase magnânimo) de vinho tinto, suponho que daquelas plagas.
23h29 O ponto alto da janta foi conhecer Tania Rösing, idealizadora e dínamo do evento. deambulando de mesa em mesa, ela fazia questão de conhecer todos os escritores e saudá-los com efusivos tapões nas costas. Oigalê! Bagual style! Ao fim da janta, muito além da meia-noite, estávamos deveras cansados. Sendo o debate do Mojids às 8h30 do dia seguinte, previmos trevas.
6h45 de terça-feira, 27 de outubro Confesso e declaro que, quando ouvi os dois alarmes do celular tocando (o natural e o de segurança, com meia-hora de diferença entre os dois), pensei em não levantar para assistir ao debate do Mojids. Começava às 8h30, mas haveria um ônibus às 7h30 para nos levar do hotel até a universidade, de modo que seria necessário acordar às 6h30 para dar tempo de acordar, tomar banho, lascar a porcelana, fazer um alongamento amigo, comer alguma coisa e, em tempo havendo, retornar ao quarto, via elevador com fresta magnética, para dar um lustro nos dentes.
7h15 Só levantei mesmo quando Mojids himself veio soar a campainha do meu quarto e convidar para o café. Quase refutei por conta de uma azia fiadasputa que me havia assolado o médio ventre durante a noite, mas resolvi dar um conferes depois de tomar uma ducha revigorante.
7h19 Já observei lá atrás (cf. anotação 21h38): eram boas as instalações do banheiro. Mas deve ser registrado, em benefício daqueles que pretendam se hospedar em Passo Fundo, que a ausência de uma banheira era um ponto fraco. Em contrapartida, o ajuste de temperatura do chuveiro era fino e a vazão das águas, caudalosa. Veredicto: nice, mas poderia ser melhor.
7h28 Como descobri outro dia – ao performar um dos variados exames requeridos pelo check-up dos meus 30 anos – que meu colesterol ruim anda muito alto, nem olhei o que tinha na mesa do café da manhã do Itatiaia. Em geral, mesa de café da manhã de hotel tem um monte de coisas incrivelmente graxosas (e por isso mesmo deliciosas) que ninguém costuma comer no seu dia a dia, como presunto frito, salsicha no molho, omeletões ou rissole na brasa. Resignado, enchi uma cumbuca de leite, despejei o conteúdo de um pacotinho de aveia que havia trazido de casa e, como diria Molière, ou Carla Bruni, voilà! Na saída ainda tomei um copo de suco de manga para rebater, mas foi só.
7h41 O ônibus não saiu às 7h30 (em matéria de horários, Passo Fundo = Brasil), mas, mesmo assim, chegamos com folga ao campus da upf, ou u-pê-éfe. Ao desembarcar, fomos apresentados ao conceito de jornadete, termo que serve para designar as voluntárias – em sua maioria, estudantes do curso de letras – que ajudam na organização da Jornada, basicamente resolvendo pepinos variados e guiando os convidados de lá para cá e, igualmente, de cá para lá. Uma delas, quando me viu passar, apontou o dedo, ensaiou um sorrisinho maroto e perguntou: “Cardoso?” Confirmei e, sorrindo modestamente, senti um quentinho macio percorrendo o estômago. Adentramos o recinto.
7h47 A grande e moderna sala, com uma lotação de aproximadamente 73,67%, estava prestes a presenciar um belíssimo debate sobre tradução, o primeiro de uma série chamada Encontro Estadual de Escritores Gaúchos (sic!), organizada pelo professor Luís Augusto Fischer. Mojids dividiria a mesa com o mítico e barbudo Ernani Ssó, a especialista em Hamlet Beatriz Viégas-Faria e o diretor de cinema (agora se aventurando com o complicoso Alice, de Lewis Carroll) Jorge Furtado.
8h02 Não sei se foi a leseira típica das oito da manhã, o excesso de aveia na cuca, a falta de carne no sangue ou o bolinho maroto que assei no quarto (cf. 6h47, “lascar a porcelana”), mas, cara: nunca houve uma cerimônia de abertura mais extensa em toda a história das jornadas literárias do mundo inteiro e, quiçá, do universo. A responsabilidade pela interminável cerimônia deve ser creditada à infindável galeria de patrocinadores e apoiadores, que incluía, além de governos, bancos, institutos, embaixadas e diversas empresas privadas, a fundamental editora s/m [agora Júpiter 2]. Um bom momento aconteceu quando a menção às lojas Grazziotin cutucou forte minha memória afetiva, desencadeando uma série de lembranças de infância. Quem diria que esse troço ainda existe?
11h04 O debate, em si, foi bem mais divertido do que eu (e todo mundo) esperava. A teoria clara, e ao mesmo tempo profunda, de Beatriz construiu a base perfeita para a minúcia técnica do Mojids. Já as divertidas anedotas sobre más traduções contadas pelo Ernani forneceram o contraste perfeito para as boas soluções apresentadas pelo Furtado. Mesmo assim, em pelo menos três momentos perdi totalmente a concentração: a) quando achei que tinha encontrado uma boa tradução para William Shakespeare: Guilherme Balança a Lança; b) quando notei que os cabelos das pessoas morenas haviam se tornado roxos na minha visão periférica; c) quando percebi que o Furtado passou boa parte do debate (senão o debate inteiro) me encarando muito, dando um blank stare. Aparentemente, ele havia me escolhido como seu foco de atenção. Diz Mojids que é uma técnica bem comum entre palestrantes para não se perderem nas ideias: escolher uma pessoa na plateia e falar como se só ela estivesse lá. Faz sentido. Eu faço diferente: olho sempre para o fundo da sala, para não me intimidar e não intimidar ninguém.
11h25 Depois de abrir o microfone para (poucas, mas pertinentes) perguntas, o debate foi encerrado sem a presença de nenhum louco de palestra e com a entrega do Troféu Vasco Prado, um mimo distribuído a todos os convidados do evento a título de gratidão pela presença. Achei sensacional. Quando chamaram meu nome para entregar a estatueta ao Mojids, senti que no dia seguinte seria ele a me fazer a homenagem, então teatralizei um pouco.
12h14 Na sequência, almoçamos com Jorge Bucksdricker – vulgo Beco – no Comercial. No dia seguinte, ele integraria a mesa de discussão sobre literatura e internet ao meu lado, e também do jornalista David Coimbra, cronista esportivo de verve sensível, deveras reverenciado pelas jornadetes de todos os quadrantes. O engraçado sobre o Beco (pronuncia-se “béco”, não “bêco”) é que eu o conhecia de longuíssima data, mas nunca fomos realmente próximos. Encontrá-lo foi uma grata surpresa, principalmente para o Mojids, que descobriu o interlocutor quintessencial para discutir James Joyce, epistemologia e poetas de Londrina durante quase três horas, entre viagens de ônibus, filés ao molho madeira e caminhadas pelo centrinho. Aliás, descobrimos num desses papos, e também via Beco, que o Comercial ficava a umas quatro ou cinco quadras do hotel.
14h32 Enquanto o Beco quis ficar no hotel repassando suas anotações para a palestra do dia seguinte, eu e Mojids retornamos à UPF para ver a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo em toda a sua glória. São quatro ou cinco tendas enormes, montadas em uma área mais afastada dentro do campus. Na maior delas – o popular tendão – rolam os debates principais, envolvendo conferencistas internacionais e os medalhões (alguns são medalhinhas disfarçados). Nas menores, há uma programação monstruosa voltada para as crianças, sempre batendo firme na tecla da formação de leitores. Uma outra tenda intermediária – tanto em tamanho quanto em posição – abriga o setor de serviços: uma pequena praça de alimentação (na qual se destacava a Padaria O Pão), uma livraria (sempre lotada, com os livros dos autores convidados) e alguns estandes, incluindo o Q.G. das jornadetes. Dentro de cada tenda, um picadeiro. Às voltas do picadeiro, arquibancadas de circo sempre apinhadas de gente muito concentrada em tudo que acontece. Isso sem falar no que rola nas salas de aula. Dá gosto de ver.
15h47 Apesar de tudo isso, a grande verdade é que, fora os debates, não há muito o que se fazer por lá. Procuramos explorar as redondezas, mas depois de encontrarmos nossos livros na livraria e atravessarmos incólumes uma porta onde se lia Saída proibida – provavelmente salvos pelos nossos crachás -, ficamos perdidos. Caminhamos até as tendas infantis e constatamos que eram, de fato, tendas infantis. Esquadrinhamos todo o perímetro. Nisso, o debate na tenda principal (último recurso) havia encerrado. Na área intermediária, centenas de pessoas (talvez um milhar) agora circulavam em gordas hordas. Em sua esmagadora maioria, mulheres. Neste ponto, já sabíamos algumas coisas sobre Passo Fundo. Sabíamos, por exemplo, que os locais não diziam Passo Fundo. Para eles, o nome da cidade é Pasfundo. E sabíamos, também, que era verdadeiro tudo que nos disseram sobre Pasfundo ser a capital universal da lordose feminina e ápice do genoma vêneto-brasileiro.
16h02 Em momento epifânico único, indaguei: “O que é que comem as mulheres desse lugar para serem todas calipígias?” Na verdade, não disse bem calipígias, mas o sentido era esse. Fora de qualquer hiperbolismo, rapaz, as pasfundenses são esculpidas a laser. Se não é algo na alimentação, só pode ser algum tipo de design inteligênte (ref. cit., Professor Ludovico) no corte das calças que elas usam. Chegava a sangrar a alma tanta beleza, tanta formosura (att., Rictones Vincenzo; ref., gritedo Sharapova) e perfeição concentrada num só lugar. No calor atroz que fazia, essa característica do relevo local era ainda mais perceptível, o que arruinava de forma profunda o eventual poder transfigurador da literatura. Faltam-me maiúsculas para celebrar a contento a abundância do burgo.
16h33 Completamente aniquilados, nos resumimos à nossa mirrada insignificância e sentamos perto dum lugar que vendia água na tenda intermediária. Quando reencontramos um camarada que havíamos conhecido há pouco tempo, Mojids questionou-me acerca da possibilidade de ele ser ou não barrão. Mas o ponto alto aconteceu quando o sistema de som anunciou, nestas exatas palavras: “Foi encontrado um óculos. Se você perdeu, venha falar comigo.” Lá pelas tantas, avistamos o Ernani Ssó, completamente empapalhado de suor, com um jornal enrolado debaixo do braço, tentando encontrar uma jornadete que o levasse
de volta ao hotel a fim de se recompor de uma hiperultramaratona de participações em debates e tendas variadas.
16h43 Fazia mesmo muito calor, algo perto dos 35 graus. Algumas tendas tiveram de deixar brechas de quase um metro na parte de baixo para permitir uma melhor circulação do ar. a fealdade da cousa era evidente. Assoberbados pela fúria do sol, e sabendo que o próximo voo (ref. cit., Asterisco) para o hotel sairia às 17 horas, decidimos entrar no ônibus na esperança de curtir o fresquinho do ar-condicionado. Como o motorista não o ligou, isso nunca aconteceu. Foram os 17 minutos mais cáusticos da semana.
17h11 Já era a quinta ou sexta vez que fazíamos o mesmíssimo percurso do Itatiaia em direção ao campus – e vice-versa -, mas dessa vez resolvi aproveitar o transe proporcionado pela canícula para prestar atenção aos traços mais sutis da urbe. As sinaleiras (farol ou sinal, e até mesmo semáforo, dependendo de que lugar do Brasil você é), por exemplo, exibem uma animação bonitinha e prática, que indica de forma gráfica o tempo de cada intervalo. Grandes poemas pintados em um muro enorme também me chamaram a atenção, mas, infelizmente, eram ilegíveis para quem passava motorizado – ou talvez seja apenas um problema meu: precisei de três viagens pra conseguir ler a única pichação que vi na cidade: A vaidade, o egoísmo e a má-fé acabam com qualquer amor. Será mesmo?
17h18 Numa viagem a uma cidade desconhecida, é difícil que algo seja capaz de me fascinar mais do que os nomes de estabelecimentos comerciais e empreendimentos assemelhados. Eis alguns que avistei em Pasfundo: Amarelão Doido, Stop Here Drive, Festa Mágica, Pokka Roupa, Koisas e Mais Coisas, O Sorvetão, Lanches Rápidos, Beer Ice, Aracne Expurgo, Pimp Energy Drink, Gos Tozzo, Kelle Bar Vinti Ver e o sensacional Parabólicas Hoje e no Futuro, além da mencionada Padaria O Pão (cf. 14h32).
21h47 Foi a segunda vez que alguém passou pelo corredor ouvindo uma sonzeira de peão de boiadeiro mega-superbombante a todo volume, mas não me lembro quando foi a primeira.
21h53 Pulamos a janta no comercial para ir direto ao tal do Boka Lanches, lugarejo onde seria realizado naquela noite um sarau literário organizado pelo Fischer, envolvendo diversos participantes da Jornada – como eu e Mojids. Havia um ônibus dedicado a nos buscar e levar até a lanchonete, mas como havíamos descoberto que ficava a menos de 200 metros do hotel, nos pareceu meio fiasco demais fazer uso dessa mordomia. Fomos a pé.
21h58 Mal entramos no lugar e nos sentimos novamente açoitados pelo poder do behind local. O lugar, enorme, estava atrolhado de gente. Percebi claramente sua vocação de point da juventude quando notei que só havia grupos de rapazes de cabelo penteado e camisa xadrez para dentro das calças, todos jogando charme pra cima de mocinhas bem alimentadas (ref. cit., Calipígias) de salto alto e argolas que flanavam de lá para cá, e vice-versa, quase sempre em ato solo – o que contrastava bruscamente com a movimentação em hordas gordas observadas durante a tarde.
21h59 Caminhamos até o fundo do Boka Lanches em busca do sarau. Na passagem, todos os olhares eram dirigidos a nós. Apesar da meia-luz, éramos irremediavelmente estrangeiros ali – ainda mais usando o mesmo casaco e a mesma calça. Ouvi até uma menina falar “Olha ali os escritores”, apontar e meio que rir. Mojids não viu nada. Bem lá no fundão, os bancos na frente de um microfone estavam vazios.
22h01 Sem muitas alternativas, decidimos sentar e pedir um engasgagato qualquer para forrar o pandulho. Famoso mesmo no Boka, dizem, é o xis, e mais famosa ainda é sua maionese caseira (ref. cit., Caderninho). Eu não posso comer essas coisas: muita gordura, manteiga, sebo, cera, graxa, trans, margarina, todas essas banhas gosmentas banhadas em petróleo e lubrificantes de esfuziante teor colesterólico. O Mojids também não pode confiar no pão: é ruim para um celíaco. Após breve colóquio, optamos por um picadinho de alcatra (corte magro) com farinha de mandioca (bom aliado, segundo se apregoa, na luta titânica contra o marrento colesterol). Mas, para arrebentar o universo, cedemos à tentação na forma de uma porção de aipim frito – que, aliás, viria tão embebido em óleo que não tive escolha senão suspirar pensando no pancotto (que é uma baita comida interessante).
22h49 Chegou o Beco e a namorada. Pediram uma torrada, tomaram umas cevas. Furtado veio na nossa mesa fumar um pouco e falar sobre Domingos Oliveira. Ao fundo, ouvimos algum murmúrio grave vindo da área do sarau. Palmas esquisitas. Em seguida: “Valeu gente. Esse foi o meu primeiro poema visual.” Botaram então alguém num esquema voz e violão pra cantar Lenine. Uma muchacha desafinada cantou Um lugar do caralho. Quarenta e cinco segundos depois que os PoETs começaram a se apresentar, pagamos a conta e fomos embora. Várias pessoas faziam o mesmo.
8h09 de 28 de outubro Não gosto de planejar nada na vida. Vou deixando me levar pelas marés e humores do momento, sem me preocupar demais. Porém, confesso que me subiu um frio na espinha quando acomodei as nádegas (obs.: não calipígia; att. ref. cit., Linguística) no acolchoado da cadeira e mirei de frente aquela plateia que lotava uns 87,09% da mesma sala usada no dia anterior. Eu sabia que o Beco tinha passado vários dias pensando no que ia falar, trazia um calhamaço de anotações e uma apresentação de slides para enriquecer seu solilóquio. Sabia também que David Coimbra é macaco velho e carismático, então não teria maiores problemas em impressionar (até porque já impressionava: foi amplamente ovacionado assim que teve o nome mencionado pelo mediador). Foi justo Coimbra quem começou. Pensei: Assim que ele acabar, não vai mais ter para ninguém. Mas não foi bem o que aconteceu. Em sua primeira participação, meio pego de surpresa, David falou pouco. Não chegou a empolgar. Quando o Fischer passou a bola para mim, senti apertar o budu.
08h25 Eu não tinha nada além dos Deuses do Improviso ao meu lado. Respirei fundo, fiz pequena prece a Tupac, O.D.B. e Notorious B.I.G. e soltei o gogó. Tínhamos aproximadamente quinze minutos para fazer uma fala inicial. Pensei que não conseguiria nem vencer dez, mas falei por quase cinquenta. Plateia vidrada o tempo todo no meu biriri. Ninguém sequer respirava. Ou terá sido impressão minha? Comecei com uma história sobre o meu avô, um crioulão nervoso que jogou e treinou futebol nos dois principais times da cidade. Falei um pouco sobre a minha trajetória sui generis com o CardosOnline, os sites literários, os blogs. Teci comentários sobre consultoria criativa, Teoria do Churrasco e Projeto Vagabond. Estive quase ao ponto de me tornar chato, de tanto que martelei a bigorna daquela rapaziada com minha trova. Mas, aparentemente, fiz efeito: na volta do intervalo vi que pelo menos quatro pessoas haviam comprado meu livro. Por um breve momento, enquanto tirava fotos com autoridades, leitores de longa data, professoras, jornadetes e loirinhas vêneto-calipígias sortidas, me senti como se houvesse patrolado o universo. Lyrically, I mean.
8h30 Só para constar: chamava-se Pedro Pontes meu avô. Era sargento da cavalaria do Exército Brasileiro. Ficou lotado alguns anos em Pasfundo, cidade onde, inclusive, nasceu minha mãe. Era mesmo mulato. Reza a lenda que teve de fugir com a minha vó de Santa Catarina para o Rio Grande do Sul porque, na época, loirinha cafungada do negão era um problema. Cravo e Canela tinha razão. Sempre foi um cara muito forte e ativo, meu vô Pedro, mas infelizmente o assistimos definhar perante o Alzheimer por uns bons cinco anos. Bem no começo da doença, quando os sintomas ainda nos pareciam divertidos, lembro que ele gostava de fazer palavras cruzadas. Apesar de semianalfabeto, o véio Pedro tinha um bom vocabulário, adquirido em grande parte justamente nas cruzadinhas. Mas chegou um ponto em que ele começou a se atrapalhar todo. Ave amazônica com três letras podia facilmente virar ONT – tudo em favor de outra palavra que fosse maior e, na sua ótica, mais importante.
8h38 Pois bem. Certa feita cheguei na peça onde ele costumava passar o dia consertando televisões e rádios (era formado por correspondência no Instituto Universal Brasileiro) e o encontrei debruçado sobre o jornal, encalacrado em uma palavra. “Me ajuda aqui”, ele disse. “Bailarino russo com onze letras”, seguiu, me apresentando o jornal. Antes mesmo de olhar eu já sabia a resposta: Baryshnikov. Conferi os cruzamentos e, como esperava, tudo errado. Não queria dizer para o vô que tava tudo errado. Ninguém nunca dizia. O que fazer? Numa olhada mais caprichada, notei que as últimas letras da palavra eram nko, o que abriu espaço para que eu desse a pista cabal: “Olha, vô, não sei que bailarino é esse, mas sobrenome de russo sempre termina em enko.” Ele olhou o jornal por alguns instantes, enquanto repetia baixinho para si mesmo: enko… enko… Então, num momento eureca violento, o véio Pedro se virou para mim e encheu os pulmões pra lascar: Chebechenko. E lascou também lá na página. Chebechenko. Grande véio Pedro. Esse era galo.
12h09 Confirmando nossas previsões (cf. anotação 11h25), Mojids me entregou mesmo o Troféu Vasco Prado ao final da cerimônia. Também houve moderada teatralização. A moça calipígia esculpida em belíssimo e robusto bronze àquela altura já me sugeria outros significados: certamente se tratava de uma homenagem discreta que o escultor gaúcho fizera (bom tempo, o mais-que-perfeito) à valerosa mulher de Pasfundo. Certo ele.
14h38 Antes de pegar o voo (ref. cit., Asterisco) de volta para casa, ainda tive tempo de sentir saudades de Amsterdã ao inebriar-me com o cheiro de pousada egípcia – onde por lá fiquei, em canais e terras batavas – emanando de um dos quartos no meu corredor.
15h20 Depois de assistir – e reclamar muito de – um programa do Marcos Mion que é um rip off escancarado e muito malfeito do clássico Whose line is it anyway?, decidi tomar um último banhão de meia hora antes de arrumar a mala e descer pra esperar uma carona até a rodoviária. A ausência de banheira se fez notar mais uma vez, a derradeira.
16h27 Não tive maiores dificuldades em instalar as roupas novamente na mala, sobretudo com a ausência de meia dúzia de exemplares de Dias Estranhos, de Rodrigo Levino. Havia levado a encomenda a Pasfundo com a intenção de doá-los a professoras de linguística e espanhol, além de toda sorte de jornadete que encontrasse pela frente. O problema maior foi encaixar o Troféu Vasco Prado. Não me lembro exatamente como, mas no fim coube.
17h15 Na hora do check-out (que mesmo demorando mais que o check-in ainda assim foi bem rápido), vi que tinha um maluco de calça de abrigo, alpargata, boné de tricô rastafári e um crachá pendurado no peito dando banda pelo saguão do hotel. Primeiro pensei se tratar de um provável participante do Seminário Internacional de Contadores de Histórias, que integrava a programação do evento, mas não: era o Humberto Gessinger. Mojids, mais uma vez, não viu nada.
17h20 Sentamos no saguão, que alguns chamam de lobby, para esperar pelo carro que nos daria uma carona até a rodoviária. A viatura deveria nos apanhar quinze minutos antes do horário de partida – ou seja, às 18h15, uma vez que nosso voo (ref. cit., Asterisco) de volta deixaria Pasfundo às 18h30.
18h Por precaução, e talvez ansiedade, liguei com meia hora de antecedência para a organização da jornada, só a título de lembrete. Aparentemente, dessa vez, estava tudo certo.
18h18 Na rodoviária comprei uma água e dois salgadões – um de frango (ruim) e um de salsicha (pior). A namorada do Beco, que voltava no mesmo voo (ref. cit., Asterisco), comprou um hambúrguer feito na hora – mas guardou para mais tarde. Mojids não comprou nada.
20h04 Passei as primeiras horas da viagem de volta tenso, decidido a capturar de qualquer forma uma imagem que provasse a existência do Centro Recreativo e Esportivo Nunca Pensei ou, no mínimo, me revelasse a sua real identidade. Coçava o buço para tentar disfarçar o nervosismo. Mojids dormia. Eventualmente, roncava. O sol se punha, pintando o cenário de um dourado muito nítido. Eis que então me aparece pela frente o edifício. De fato, ele existia – e era exatamente esse seu nome. Infelizmente, não consegui registrar o instantâneo. Mas pelo menos já sei que fica nas cercanias do município de Tio Hugo, o que explica muita coisa.
21h54 Singrar os pampas faz muito mais sentido quando há um mínimo de luz que os tornem visíveis. Sem DS, sem computador e sem bateria no celular – e com jogo do Grêmio rolando naquele exato momento -, senti muitas saudades da tecnologia.
0h11 Chegando em casa, procurei confirmar no Google a tangibilidade do Centro Recreativo e Esportivo Nunca Pensei. Nada achei. A saga continuará.
[*] Foi exatamente aqui, quando concluí esse raciocínio, que me dei conta de que jamais seria capaz de me referir de forma diferente aos BÓLIDOS que nos transportariam pelas estradas rumo ao NOROESTE do estado gaúcho nos próximos dias (muito embora o LESNORDESTE sempre tenha me parecido um DESTINO muito mais AUDAZ para se explorar).
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