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Paraíso Perdido
Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em dezembro de 2012
Se dissesse que lembro com perfeição da primeira vez em que acessei a internet estaria praticando a mentira. Todavia, algo que posso afirmar é que sou usuário dessa substância há pelo menos 15 anos.
No começo nossa relação era casual e descontraída, mas, ao longo dos anos, foi ficando cada vez mais séria. Na verdade, antes de aceitar o desafio de ficar uma semana sem usá-la, não tinha muito clara a medida da minha dependência.
Minha droga favorita sempre foi o e-mail. Não sei precisar quantos já escrevi no total, mas só de 2004 pra cá foram mais de 300 mil. Estimo que na época do "CardosOnline", fanzine por e-mail (!) que editei entre 1998 e 2001, deve ter sido muito mais.
Eu passava de 8 a 10 horas por dia apenas lendo e escrevendo e-mails. A média caiu um pouco nos últimos anos, mas ainda hoje passo mais tempo lendo e respondendo e-mails do que fazendo qualquer outra coisa quando estou on-line. Até porque, no fundo, é como diz aquela gostosa canção cheia do groove sensual que exsuda dos muitos lábios de Janet Jackson: "You don't know what you've got 'till it's gone" (algo como "você só sabe o que tem em mãos quando a coisa acaba").
Uma semana sem internet. Tentei me lembrar das várias vezes em que isso devia ter me acontecido, mas não consegui. Muitos anos atrás, quando ainda existia uma separação bem visível entre os mundos on-line e off-line, era mais possível.
Internet só no computador, conexão discada, planos de horas (eu tinha 30 por mês). Atualmente, com internet sem limites no celular, no videogame, nos parques, restaurantes e até na geladeira, difícil é não estar conectado.
Quer dizer, difícil pra você. Pra mim beira o impossível.
Os primeiros sintomas de que os próximos dias não seriam exatamente fáceis começaram a se manifestar por volta das 20h do domingo. Eu já havia me alimentado de churrasco de ovelha, testemunhado a vitória convincente do meu time e àquela altura bebericava a primeira dose de "single malt" da minha vida (bonzinho) na casa de um bom amigo.
Ventinho gelado entrando pela janela, nenhum compromisso ou problema muito grave aguardando a minha participação. Um sentimento de satisfação bem infantil.
Quando consultei o celular em busca das horas, realizei rápido cálculo mental e percebi que teria menos de quatro até entrar em jejum pelas próximas 168 (ref. cf. "sete dias").
Explico: para honrar a experiência e aprender alguma coisa, decidi estabelecer metas bastante claras e segui-las à risca, com um rigor que não costuma ser característica muito marcante de minha personalidade. Queria me afastar de qualquer contato com a rede mundial de computadores precisamente às 23h59 do domingo e só retornar na mesma hora do domingo seguinte. Sem exceções, sem recaídas.
Normalmente, eu teria percorrido a pé os dois quilômetros que separam a minha casa da de meu amigo (medida aproximada: não pude consultar o Google Maps), mas naquela noite preferi tomar um táxi. Não tinha esse tempo para perder. Hoje não.
Achei que não fosse acontecer, mas reconheço: experimentei leve desconforto quando percebi que faltava menos de uma hora. Um misto de ansiedade e apreensão. E eu não sabia nem direito o porquê. No fundo, acho que a gente nunca sabe.
SEGUNDA Deu 12h20 e eu acalmei o despertador com um toque gentil de meu mais belo indicador. Num dia normal, teria dobrado um travesseiro no meio para elevar a cabeça e passaria os próximos 20 minutos deitado, verificando e-mails e Twitter e consultando a previsão do tempo no celular.
Mas hoje eu não podia. Levantei de forma abrupta e fui direto para o segundo estágio (rigorosa higiene bucal e fisiologia humana básica). Depois disso, todavia: adentrei o vazio. O que fazer com todas aquelas horas que o dia me oferecia?
Numa segunda-feira típica eu estaria realizando a triagem dos e-mails. Primeiro, apagaria todos os spams que haviam furado os filtros anti-spam. Depois lidaria com os e-mails de trabalho. Então me concentraria nos pessoais. No fim, teria dedicado a tarde inteira a eles.
Quando a noite estivesse começando a cair -naquela época, por volta de 18h30- eu começaria a pensar nas tarefas mais práticas. Se houvesse algum trabalho a ser executado, era hora de começar. Caso não houvesse, dedicar-me-ia ao livro que estou escrevendo (chama-se "O Sensual Adulto").
Em qualquer das situações, a jornada se estenderia até algum ponto entre as três e as cinco da madrugada, sendo interrompida apenas por: a) banho (uma unidade); b) alimentos (uma a três unidades); c) conferência de e-mails e ronda afetiva pelo Twitter (17 a 20 unidades).
Hoje seria diferente. Confesso que estava animadão com a perspectiva de ficar uma semana sem internet. Eu não teria alternativa a não ser trabalhar em "O Sensual Adulto" -o que tem se mostrado bastante difícil com todas as distrações da vida moderna.
Sentei na sala, abri o laptop e comecei. Eu havia avançado algumas horas quando fiquei em dúvida sobre o significado (e existência) das palavras "profílico" e "prolífico" (volta e meia eu confundo). Sem internet para resolver a questão, constatei que também não possuía nenhum dicionário impresso em casa.
Na verdade, nem me lembrava da última vez que havia manuseado um dicionário impresso. Perplexo, resolvi dar uma parada. Mas como fazer uma cópia de segurança dos avanços da tarde se não podia me enviar o texto por e-mail? Simples: apelando para o pendrive da covardia.
Com a humilhação brutal ainda doendo, decidi abandonar a escrevinhação e passar algumas horas praticando videogames. Uma vez que não podia jogar "Call of Duty" on-line, optei por um "Resident Evil 5" que comprei há seis meses e ainda nem havia tirado do plástico.
Antes que o jogo começasse a rodar, entretanto, o sistema pediu autorização para conectar-se à internet e baixar uma atualização. Isso eu não podia permitir. Todavia, sem fazê-lo, não podia jogá-lo. No fim das contas, acabei recorrendo ao "FIFA 11", onde administro dentro e fora de campo o valoroso time italiano do Siena há 13 temporadas.
De resto, foi um dia bem tranquilo, exceto pelo fato de, no fundo da madrugada, ter finalmente conseguido assistir às 3 horas e 25 minutos de "A Lista de Schindler" quase do começo ao fim e, por causa disso, ter ficado com uma vontade imensa de clarear o dia lendo sobre o tema.
TERÇA Fui almoçar com um amigo -que, por sinal, conheci on-line - e ele serviu-se de aproximadamente um quilo e meio de peixe. Na sequência, emendei supermercado displicente, do tipo que costuma enlouquecer as mulheres: ausência de lista de compras, movimentação errática pelos corredores, seis minutos parado na frente dos queijos para resolver não levar nenhum, esse tipo de coisa.
Quando caminhava de volta pra casa, bateu uma fissura momentânea -porém aguda. Senti muita vontade de conferir os meus e-mails. Mas muita. Fiquei me perguntando o que eu já teria perdido nas primeiras 24 horas de exílio digital -e o que ainda perderia até o final.
Não estou exagerando quando digo que uns 60% das amizades, uns 80% das paixões e 100% dos meus trabalhos surgiram por e-mail nos últimos sete anos.
Senti que estava começando a adentrar um terreno perigoso, então busquei mudar de assunto mental. Funcionou: o frio na barriga não durou nem meia quadra. Mas me mostrou que o diabinho da recaída ainda ia me azucrinar muito nos próximos dias.
Enquanto isso, tenho anotado uns lances pra pesquisar quando voltar. Por exemplo: fotos do jovem Kirk Douglas. Aparentemente, na juventude, o pai de Michael foi muito parecido comigo.
Outra coisa: enquanto calçava a meia, tirei um bifinho da lateral do dedão da mão com um golpe do Garrão Czarnobai (unha do dedão do pé afiada e possante, característica de família). Abriu leve talho com sanguinho. Será que existe a possibilidade de contaminação por bactérias?
Pra piorar, durante o longo café solitário, li no jornal que naquela semana a Wikipédia começou a oferecer a opção de baixar o seu conteúdo para consultas off-line. Num dia normal, seria a primeira coisa que eu faria assim que chegasse em casa.
No mais, passei a tarde trabalhando no roteiro de um documentário. Resolvi tudo em coisa de 45 minutos -estimo que teriam sido algo entre quatro e seis horas se ficasse intercalando o trabalho com breves olhadelas nos e-mails e rápidas conferidas no Twitter. Um grego nu e antigo talvez se animasse neste ponto para dizer: "eureca". Já eu: ainda não.
Por fim, um troço curioso e pitoresco: a bateria do meu celular, que geralmente dura menos de 24h, só foi acabar hoje, quase três dias depois da última carga.
QUARTA Ainda é quarta? Rapaz, o tempo está passando muito devagar.
Hoje senti falta de entrar no Instagram pra ver fotos de coisas bonitas e gostosas, como gatas sensuais em poses provocantes e pratos apetitosos no estilo culinário (eu gosto). Ainda dentro do mesmo tema, senti vontade de compartilhar um retrato que fiz de um texto que vi publicado em jornal. Chamava-se "Holocausto brasileiro" e versava sobre os leprosários que funcionaram entre as décadas de 1930 e 1980 no país.
Num outro momento e ambiente bateu saudade dos sites de cunho adulto. Neste instante proferi o seguinte lamento: "Ai daquele que depende dos sites de cunho adulto para aliviar-se". Anotação mental para um futuro apocalíptico: iniciar coleção de fotos e vídeos.
Mais tarde, quis pesquisar sobre "O amor é um bichinho/ que rói, rói, rói". Gostaria de ouvir novamente, saber quem canta, se possível ver imagens de apresentação ao vivo no "Viva a Noite" clássico (quando ainda era de noite).
No mais, tive dificuldades em descobrir o horário do jogo do Grêmio -e se é que o Grêmio jogava naquela noite. Na hora me ocorreram duas maneiras de descobrir: a) perguntar para o garçom do bar da esquina; b) deixar a TV ligada a partir das 19h30 e ficar alternando entre todos os canais de esporte até começar.
Levando em conta que trajava apenas cuecas do tipo "slip" desde que levantei e não me agradava muito a ideia de trocar de figurino, achei melhor ficar com a segunda opção.
QUINTA Sempre deixo pra viver intensamente a rua na quinta -bancos, Correios, supermercado, consultas médicas, reuniões, café sub-reptício. Em geral é bem suave, mas hoje os problemas começaram já na largada: sem poder consultar a previsão do tempo, eu teria de sair na rua para decidir se o dia estava quente ou frio.
Quem vive ou já viveu em Porto Alegre, no Uruguay do Norte, sabe que por aqui a lógica meteorológica inexiste: pode fazer 34ºC num dia e 10ºC ou 12ºC no seguinte. Especialmente na meia-estação.
Além disso, sem poder acessar os meus e-mails, não tinha como saber para onde devia enviar meu correio da semana (os endereços todos estavam lá). Da mesma forma, não possuía os códigos de barra das faturas de cobrança que todo mundo agora me manda por e-mail. Um carioca, ouvindo atentamente essa história, talvez dissesse agora: "Que vacilo, bróder".
Para fechar com chave de ouro, não tinha como me assegurar de que a reunião marcada para hoje era mesmo hoje. Talvez tenha sido ontem. Quarta e quinta são muito parecidas. Até quando escritas: mesmo começo, mesmo fim, mesmo número de letras - e ainda por cima só mudam duas.
O lembrete que mandei para mim mesmo por e-mail, na semana passada, dizia o dia. Horário também. Do lugar, pelo menos, eu me lembro. Vou pra lá ver o que acontece.
A mensagem que tiro dessa experiência até aqui é: o cara que confia demais na nuvem pode vir a se encalacrar.
SEXTA Há dois anos uso um aplicativo chamado Zumocast para acessar no celular os arquivos do meu computador, bastando para isso que ambos estejam conectados à internet. Em 99% das situações, faço-o para ouvir os temas musicais que estão armazenados no computador do quarto enquanto pratico a sentada na sala.
Hoje, todavia, ficarei só na vontade. Quer dizer, em termos: sempre posso usar o mesmo pendrive da covardia já citado neste reporte para transferir do desktop para o laptop um pacote de cerca de 300 temas musicais e ouvi-los da mesma forma: sentado na sala, procurando me acalmar porque: falta pouco.
Mais tarde, distraído, cliquei por mera força do hábito no leitor de e-mails do celular, mas fui forte o suficiente para fechá-lo antes que carregasse as mensagens.
Também senti um calafrio percorrendo a espinha e uma enxurrada de sangue aquecendo a cara -sintomas clássicos da vergonha, fruto da culpa de quem percebe que está fazendo uma coisa errada. Não consegui decidir se isso é bom ou ruim.
SÁBADO Passei a noite sonhando com uma aranha enorme feita de uma espécie de porcelana verde-clara. Ela tinha garras de caranguejo e se prendia à minha mão com firmeza sem, todavia, me causar sofrimento, dano ou dor.
Quando acordei tive muita vontade de ler sobre os possíveis significados do episódio mental em três ou quatro sites de interpretação de sonhos. Mas não pude.
DOMINGO Faltando poucas horas para o fim da experiência, admito: não foi tão ruim quanto eu esperava. Apesar de ter sentido vontade de entrar na internet todos os dias, várias vezes por dia, não sofri nada parecido com uma crise de abstinência. Talvez porque tenha ficado pouco tempo privado da droga e soubesse que, em breve, poderia voltar a usá-la. Um mês afastado da internet: aí sim creio que as coisas poderiam complicar.
Muito embora minha ansiedade tenha diminuído significativamente, é preciso revelar que comi mais, bebi mais e até mesmo pratiquei o fumo sapeca e maroto nestes dias afastados da internet. Parece ter rolado algum tipo de compensação.
Por outro lado, também vi muito mais filmes (chorei copiosamente no final de "Jamaica Abaixo de Zero") e redescobri o hábito da leitura de jornais -que, estou certo, tornarei a abandonar. Talvez isso queira dizer alguma coisa, talvez não queira dizer nada. De qualquer forma, aconteceu.
Outra coisa que aconteceu, e essa me surpreendeu bastante: não consegui me dedicar mais ao meu livro por estar desconectado. Na verdade, foi provavelmente a semana em que menos trabalhei em "O Sensual Adulto" este ano. Ainda não entendi direito.
A falta que eu sabia que sentiria dos meus amigos foi largamente compensada por telefonemas e SMS (alguns dizem "torpedos"). O maior medo de todos, de ficar fora da internet e perder toda a sorte de oportunidades espetaculares, até agora não apareceu.
Achei que ficar uma semana sem internet seria o equivalente urbano a isolar-se nas profundidades oceânicas a bordo de um submarino ou naufragar numa ilhota amarela no meio do Índico. No fim, foi muito mais como uma semana de férias, descompromisso e relaxamento (o que, acaba de me ocorrer, talvez explique porque não consegui dar atenção ao livro).
Se dependo da internet? Atualmente, sim. Se preciso dela? Na verdade, não. Quase todos os problemas que encontrei poderiam ter sido facilmente contornados com o auxílio de algumas tecnologias primitivas, como o bloco de notas e as ligações telefônicas. O que me leva à seguinte conclusão: não sou o viciado que temia ser.
Gosto muito de internet, é claro, mas ainda está longe de ser indispensável. Com alguns ajustes, consigo viver sem ela. Ou, pelo menos, reduzir bastante o meu consumo.
EPÍLOGO Balanço de uma semana sem internet: 1.356 e-mails (sendo cerca de 1.200 pessoais). Cinco horas para ler tudo. Não perdi nenhuma oportunidade espetacular. Carmen Silva canta "O Amor é um Bichinho", mas não parece ter ido ao "Viva a Noite". Kirk Douglas não parece muito comigo, exceto quando interpretou Van Gogh.
Profílico não é uma palavra. No mais, estou baixando a Wikipédia e lendo sobre o significado de sonhar com uma aranha. Não é muito bom.
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