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Nem John Wayne matou tanto índio na Cidade Baixa
Publicado originalmente na Irmandade Raoul Duke, em março de 2002
Sete e treze no horário do Cardoso. Deslizo pela Carlos Barbosa no comando da minha viatura sem nunca tirar os olhos do retrovisor. Estou sendo seguido há alguns quilômetros mas isso não é o que mais me incomoda. Meu procurador está me esperando há mais de uma hora no Cotiporã. Imagino que quando finalmente chegar lá ele provavelmente não terá mais condições de estabelecer qualquer tipo de comunicação razoável, o que justifica a minha velocidade a esta hora da noite. Não freio pra fazer as curvas, mas isso também não é eficiente: o Palio branco segue minha trilha até a próxima sinaleira, dá o sinal para a direita e emparelha ao meu lado. Não movo a cabeça. O motor assobia em intervalos sistemáticos enquanto procuro alguma coisa para gritar. O sinal abre e o Palio projeta-se como uma bala na minha frente, cantando pneus e fundindo-se gradualmente com as outras centenas de luzes da cidade. A primeira reação é de perseguir o desgraçado, fechar seu carro e puxá-lo pra fora aos gritos, ensinando-lhe, quem sabe, um pouco de respeito no trânsito. Desisto. Estou muito atrasado pra isso. Suo frio. Isso que a noite ainda nem começou.
Uma noite bem atípica, diga-se. As ruas da Cidade Baixa estão vazias e há poucas mesas ocupadas nos bares. Estranhamente, o tradicional ritual do estacionamento me consome alguns minutos - não há vagas em lugar nenhum. Eventualmente uma vaga aparece, há poucas quadras do Cotiporã. Tudo bem - uma caminhada nunca matou ninguém. Na penumbra da noite vejo dois coloninhos sentados na frente de um prédio, os olhos vidrados na minha movimentação. Um cheiro doce de cola aumenta conforme me aproximo. Procuro evitar manter contato visual, mas um deles resolve demarcar seu território e se coloca na minha frente, impedindo minha passagem: "Ó, alemão." Desvio da figura e sigo reto. O outro então levanta e os dois saem em perseguição, sempre repetindo em quase uníssono "Ó alemão".
Meu procurador terminava de comer uma à la minuta com frango quando me aproximei de sua mesa. "Estou sendo seguido", disse. Ele olhou para os dois lados, largou o garfo e bateu na mesa esbravejando: "Então precisamos sair daqui imediatamente". "Não" Respondi. "Isso vai nos expor. Seremos uma presa fácil." Meu procurador parece perturbado. "Então vamos pedir uma cerveja." Não é um argumento que eu vá questionar, especialmente a essa altura do campeonato. O Cotiporã permanece num irritante vazio. Do outro lado da rua os coloninhos continuam à minha caça. Numa das esquinas mais movimentadas da Cidade Baixa é inquietante o fato de ser um dos únicos a beber num sábado à noite.
Em uma mesa próxima um casal bizarro não demonstra esforços em disfarçar o quanto está bêbado, e insiste em derrubar copos e depois explodir em risos medonhos. Testas brilhosas de tanto óleo, dentes quebrados, camisas multicoloridas. Meu procurador parece não notar, irritado com a música ambiente.
O rádio ligado na Continental faz a trilha sonora perfeita para a ocasião, desfilando uma seleção inimaginável: easy listening em toda a sua glória e força. Quando a quarta cerveja começa a fazer efeito é chegada a hora de rever a missão da noite: Bingo! O orçamento de dez reais parece apertado para um combo cerveja-bentil-bingo, principalmente porque nenhum de nós sabe absolutamente nada sobre o universo de jogatina da terceira idade. "Vamos fazer o seguinte" Disse meu procurador, dedo em riste. "Eu pago a ceva aqui e tu paga o bingo". Me pareceu justo o bastante. Além do mais, em algumas horas não lembraríamos mais de quaisquer roteiros pré-estabelecidos nesta noite. Pagamos a conta e nos direcionamos para a João Pessoa.
Já eram nove e meia e a Lima e Silva continuava às moscas. Caminhávamos sem muita pressa enquanto meu procurador apontava para as mesas vazias "Numa noite quente como a de hoje é uma heresia não sair pra tomar uma cerveja". Com certeza. É raro que uma noite esteja assim tão agradável no final do verão em Porto Alegre. Não está abafado, não está úmido, não está chovendo e ainda por cima uma brisa alegre agita as árvores e os meus cabelos. Perto do Guion o movimento começa a aumentar um pouco. Meu procurador resmunga alguma coisa inaudível enquanto coça o queixo. Minha mente está em sintonia com o bingo. Ainda faltam muitas quadras mas já sinto o cheiro do ambiente enfumaçado e hostil. Vejo as expressões de apatia e desprezo nos jogadores profissionais e sinto a adrenalina cortando o efeito do álcool. Resolvo então parar de pensar nisso.
Em oito minutos de caminhada enfim aparece à nossa frente, encrustado numa das esquinas mais famosas do porto dos casais, o majestoso e imponente Bingo Avenida. Meu procurador pára antes de mim, e fica olhando hipnotizado para os luminosos, um tanto atordoado. Continuo circundando o prédio até encontrar uma escadaria que leva a uma imensa porta de madeira, guardada por um bem vestido e sorridente porteiro. Meu procurador hesita por um segundo. Tomamos quase ao mesmo tempo a decisão de subir as escadas. Estávamos ambos de bermudas e tênis, o que me deu a nítida impressão de que seríamos barrados. "Bom, temos uma missão a cumprir" eu disse, e comecei a subir, confiante. O porteiro sorriu e nos abriu a porta, num movimento ao mesmo tempo mecânico e simpático. Eu nunca havia sequer olhado para dentro de um bingo, não tinha a mínima idéia do que poderia acontecer a partir daí.
A porta aberta nos catapultou para um universo paralelo. Um imenso placar eletrônico piscando números vermelhos, dezenas de aparelhos de televisão mostrando bolas numeradas, centenas de mesas ocupadas pelos mais diversos tipos de ouvintes do Zambiasi. O pé direito altíssimo, espaço gelado nas cores cremes da parede e numa arquitetura cheia de colunas e firulas. Apesar do meu pequeno conhecimento das artes aplicadas, a palavra "rococó" me veio à cabeça, mas não vamos interferir no barroco.
Eu me sentia em um sonho: todas as sensações eram novas. Meus passos em câmera lenta. Eu pisava em carpetes macios e a voz de aeroporto que anunciava os números ressoava na minha caixa craniana. O conceito de "universo paralelo" era cada vez mais claro. Ninguém notou nossa entrada. Todos permaneciam de cabeça baixa, concentrados em riscar números em suas cartelas. Me distraí com o ambiente por um momento. Meu procurador já havia encontrado uma mesa vaga e estava sentado quando finalmente o encontrei. "Caralho, olha só a cara dessas pessoas" ele disse "Um bando de drogaditos". De fato. As feições de um jogador inveterado diferem pouco das de um viciado em drogas. Aqueles filtetes de suor silencioso, os olhos ricocheteando, o metodismo neurótico e a concentração canina diferenciam os veteranos dos novatos. Por alguns segundos me senti num daqueles prédios abandonados onde os viciados em crack se reunem pra fumar em filmes do Spike Lee.
Comecei a olhar em volta enquanto meu procurador atacava os garçons e crupiês perguntando pelas regras da casa. Antes que ele conseguisse uma das belas atendentes nos disse que cada cartela custava cinqüenta centavos. "AAAHHHH! Nós nunca mais vamos parar de jogar!" ele gritou. Em volta das mesas notei um balcão cheio de aparelhos eletrônicos parecidos com computadores. Provavelmente um sistema de controle das apostas. As pessoas sentadas atrás desses balcões eram os casos mais crônicos: mal piscavam. Nem se davam o trabalho de gritar "bingo". Eventualmente levantavam a mão e uma das belas funcionárias enfiada em tailleurs bordô se aproximava com um sorriso e algumas instruções. Antes que pudesse entender qual a função daquelas pessoas, meu procurador me trouxe de volta ao mundo real. "Escuta" Começou. "A cerveja aqui custa 1,60 a long-neck. Como eu acho que a gente ainda não bebeu o suficiente, vamos sair daqui, beber um pouco mais e voltar mais tarde".
Mais uma vez ele pareceu fazer muito sentido. Fui mijar enquanto meu procurador ficava importunando o porteiro procurando obter informações pertinentes à nossa missão. Uma porta exatamente igual à da entrada numa das laterais escondia o banheiro. Esperei encontrar algo digno de um cassino, mas fui brutalmente expulso de minha fantasia quando a porta se abriu e constatei que era menor do que um elevador comum. Duas privadas, um mictório de uns cinqüenta centímetros. Um cubículo. Pra que essa porta enorme? Não sei bem porque, mas lembrei que aquilo havia sido uma sala de cinema um dia, uma lembrança que me fez sentir um pouco velho.
"Temos até as onze horas" foi a primeira coisa que o meu procurador me disse quando saí do banheiro. Eram nove e trinta e oito, tínhamos mesmo bastante tempo. "Voltamos até a Cidade Baixa?" sugeri, prontamente rechaçado pela fúria do baixinho. "TÁ LOUCO? EU NÃO VOU CAMINHAR AQUILO TUDO DE VOLTA! Deixa de ser fresco e vamos parar no primeiro bar que aparecer aí pelo caminho." E já estava indo em direção ao nada, resmungando e agitando os braços. Meu melhor movimento nessa hora seria seguí-lo. Paramos em um bar sem nome, no meio da João Pessoa, de frente pra Redenção. Um negrão magricelo vestido de garçom mexia em uma espécie de churrasqueira do lado de fora do bar, que resumia-se a um corredor de azulejos floridos muito estreito e comprido, permeado por meia dúzia de mesas em uma parede e na outra. Uma daquelas mesas aquecidas de buffet no meio. Todas as poucas pessoas no bar estavam servindo-se do buffet. Notei um skatista pegar quatro vezes o pudim da sobremesa. Peguei a mesa mais perto da porta e sentei virado pra dentro. Meu procurador foi ao banheiro.
O magricelo me trouxe um cardápio. A essa altura do campeonato, comer me pareceu uma boa idéia. Resolvi então ler o menu em busca de algo para acompanhar as próximas dez ou quinze cervejas. Entenda: eu sou um inspetor gastronômico em missão de encontrar o melhor xis-coração da cidade, então foi justamente o que pedi. Especialmente por causa do preço - R$ 2,20. Surpreendentemente a cerveja acompanha uma certa lógica mercadológica e custa apenas 1,90. Nada mal comparado aos 2,30 ou 2,50 praticados em quase todos os bares da Cidade Baixa. Mas esse xis... seja o que Deus quiser.
Meu procurador volta do banheiro e senta de frente pra rua. Os freqüentadores do Átrio vão passando aos pares. "Não era hoje que tinha baile funk no Terê?" ele pergunta. "Que que esses caras tão fazendo aqui? Por que eles não estão lá?", repetia, enquanto golpeava nervosamente a mesa. Depois passou a gritar "Os mano - POU! As mina - PÁ!" pra todos que passavam, que lançavam olhares nada amigáveis de volta. No fundo foi um bom resultado. Tivemos muita sorte de não tomar nenhum tiro com uma atitude dessas. Depois de uma longa espera, eis que chega o esperado xis-coração. Quando o magricelo olhou pra mim lá da cantina e começou a caminhar na minha direção eu não consegui identificar a extravagante massa escura como sendo um xis-coração. Pensei que - sei lá - era uma torta pra alguma outra mesa. Um empadão. Eu não sabia na hora, mas estava prestes a vivenciar a experiência gastronômica mais intensa de toda minha vida.
Eu sou um purista - jamais uso talheres para comer um sanduíche. Isto é um crime, é como tomar cerveja de colherinha. Infelizmente a massa obtusa que repousava no meu prato demonstrou de forma eficaz que esta seria, fatalmente, a minha primeira vez. Muito a contra-gosto quebrei a casca de pão torrado com o garfo, cortei um pedaço daquela monstruosidade e experimentei. Putz, e não é que é bom o negócio? Meu procurador me olhava com uma certa temeridade, acompanhando cada nova garfada com medo nos olhos, o que tornou a experiência ainda mais desconfortável. Certamente ele não acreditava que eu seria capaz de ir até o fim com aquele monumento à azia. Não tenho certeza, mas acredito que a iguaria vinha com nada menos que DOIS ovos e pelo menos umas cinqüenta gramas de coração e miúdos. O resto do conteúdo que boiava em uma grossa camada de maionese ficou totalmente na subjetividade. Na verdade, foi melhor assim. Minha luta contra o sanduíche maléfico demorou quase quarenta minutos. Meu procurador riu satisfeito quando engoli a última bocada. Chamávamos mais uma entre várias "saideiras".
Foi então que aconteceu. Um hippie velho apareceu do meio da noite e entrou no bar. A cor do velho era a cor de suas roupas - um cinza-esverdeado opaco, uma tonalidade parecida com um filme mal revelado. Ele trazia nas costas uma sacola cheia de chicles de bola, que ofereceu insistentemente para o magricelo, usando toda a série de argumentos. "Pô, saca só, esse aqui é daqueles com recheio de banana, bicho..." O magricelo pediu que o hippie esperasse e sumiu por uma cortina dentro do bar. Um cara fortão, pinta de dono, apareceu de lá. A circulação das suas pernas deveria estar perigosamente debilitada a julgar pela justeza de suas calças, que desapareciam dentro de bisonhas botas country. A presença da figura por algum motivo amedrontou o hippie, que começou a sair do bar andando de costas, se desculpando por qualquer coisa. O dono ficou alguns segundos parado na porta, esperando que o velho sumisse definitivamente da sua vista. Na parte de trás de sua camiseta ainda li "NEM JOHN WAYNE CAPTUROU TANTO ÍNDIO" quando passou pela nossa mesa voltando para o mesmo buraco de onde havia saído.
Deu! Chegamos ao nosso ponto máximo - vamos voltar pro bingo. "Escuta" disse novamente meu procurador, com os olhos embaralhados. "Estamos muito bêbados. Talvez devêssemos salvar nossos fígados tomando um bentil" Fiquei um pouco pensativo. Quis saber o que o gentil medicamento faria comigo. "Os efeitos são imprevisíveis" ele disse. "Mas já te aviso: não te assuta se por acaso as cartelas começarem a gritar 'bingo' pra ti". Por medida de segurança, preferi arriscar o fígado.
Era perto das onze e meia quando chegamos novamente no Bingo. O porteiro já era nosso amigo. Tinha ido jantar justamente no bar onde bebíamos anteriormente, e chegou a nos cumprimentar quando entramos dessa vez. Tivemos um pouco mais de dificuldade para achar uma mesa. Muito mais gente tinha resolvido apostar hoje e nossos reflexos estavam severamente comprometidos. No fundo eu torcia para que não houvessem mesas livres, o que nos forçaria a dividir nossa febre de jogo com algum casal de velhinhos que não tinha nada melhor pra fazer no sábado de noite. Infelizmente encontramos uma mesa quase na metade da sala, que pelo menos nos dava uma visão bem satisfatória da casa.
O público havia mudado muito desde que saímos. Agora algumas pessoas mais novas misturavam-se à multidão de idosos, mas esses são jogadores de impulso, jogadores de ocasião. Jogam algumas poucas cartelas, eventualmente ganham uma linha e reinvestem tudo no bingo novamente, só para perder tudo outra vez. São barulhentos e eufóricos, contentam-se com uma derrota programada. Saem felizes para um bar e pronto. Tiveram a sua dose regulamentar de adrenalina. Uma dose saudável. Brincaram o suficiente com as suas endorfinas perversas, agora podem voltar para suas rotinas seguras. Isto eu também sou, isto não me interessa. O que me interessa são os veteranos.
Os veteranos quase não se movem e falam apenas o necessário. Mexem os braços para pedir cervejas, cartelas e o dinheiro que ganharam. As órbitas rolam pra cima e pra baixo acompanhando as luzes e as mãos marcam todo tipo de carimbo nos números sorteados. São profissionais. Desligados das novelas e do desprezo dos jovens, estão vivendo novamente no perigo, testando seus limites até onde a cegueira da ganância os permite. Gente deve perder até casas assim.
"A cartela custa cinqüenta centavos" disse a loirinha de óculos. Esta é toda informação que teremos sobre este jogo esta noite. "Me vê duas", disse confiante meu procurador, arremessando a nota de dez na mesa. Esse era todo nosso orçamento, convertido rapidamente em nossas mentes em 20 possibilidades de ficar rico, divididas em algumas rodadas.
A primeira tentativa é extremamente frustrante. Compramos uma cartela completa, composta de seis pequenas cartelas com 15 números cada. Controlar noventa números ao mesmo tempo é uma tarefa muito refinada para quem nunca jogou bingo, principalmente quando se está bêbado. Em contrapartida, cinqüenta centavos não é uma perda significativa. E além do mais, a rodada pagava apenas 150 reais. Café pequeno.
"AHHH! Maldição! Eu quero um daqueles!" berrou meu procurador apontando para uma sorridente morena que carregava um enorme troféu bagaceiro que primeiro me pareceu uma pomba de metal em direção à mesa que havia gritado bingo. Um troféu horroroso, com pequenas placas de metal coladas numa base revestida de fórmica sustentando uma jarra prateada que lembrava vagamente um adereço de capô. Nesse instante decidimos que não sairíamos dali sem um troféu.
Mal havíamos virado a cabeça de volta para nossa mesa e uma nova cartela em branco estava disponível. "Dois reais a cartela", a mesma loirinha. Meu procurador grunhiu "Me vê duas". A nova rodada pagava 500 reais. Talvez isso justificasse a flutuação do preço nas apostas. Dessa vez precisávamos nos concentrar, afinal de contas, quinhentos reais pagam muitas cervejas. E ainda havia o TROFÉU. Sim, o maldito troféu, que apesar de não custar mais do que 100 pilas em qualquer loja da Voluntários, representava pra nós o sonho maior de todo apostador - a realização total e plena de todos os nossos mais sinceros desejos tupiniquins deslumbrados com Las Vegas. Ao menos foi o que me pareceu, no momento.
Troquei de caneta. Várias hidrográficas azuis num suporte no meio da mesa. Uma pra cada rodada, pra dar sorte. Grudei os olhos no cartão e isolei qualquer perturbação externa. Cada número pronunciado pelo locutor do Salgado Filho me fazia pensar em barulhos de turbina e free-shops. Elocubrações mentais de viagens pelas vielas de Kiev me distraíam enquanto a distorção sonora aumentava consideravelmente. O primeiro número aparece na tv, no placar e na voz "Setenta. Sete zero." Meu procurador grita. O sangue correndo pra minha nuca chega a dar arrepios. Uma série de cinco números sai na mesma cartela. Agora faltam apenas dez. Meu procurador grita a cada novo número marcado. Me sinto atento como nunca, mente totalmente vazia, sintonizada apenas nas luzes e em um único tom de voz. O silêncio entre os anúncios numéricos é imperceptível. Os instantes são picotados e embaralhados novamente numa anfetamínica linha de tempo. Cada número riscado no cartão causa um prazer quase masoquista.
A montanha russa começa a engrenar quando meu procurador grita "Linha!" prum atendente apático, que de imediato responde "Tem que gritar 'bingo'. Não pode ser linha". Erro tático. Como um cachorro furioso, meu procurador vira-se pro atendente, punhos cerrados esmagando a caneta "Como assim não pode ser linha? Eu marquei linha, porra!". "Cinqüenta e nove. Cinco nove" dos autofalantes que não aparecem. Agora me falta apenas o número 30.
Quando consigo olhar pro meu procurador ele ainda está bufando, mas já afundando outra vez na cadeira, marcando o 59 na sua cartela e resmungando algum palavrão. Rio um pouco pra disfarçar o nervosismo. "Se o próximo número for o 30 eu não vou nem entregar essa matéria. Vou vir jogar aqui sempre". A tensão durou menos de meio segundo. "Setenta e quatro. Sete quatro" veio seguida de um "BINGO" sonoro e contente, numa mesa lá no fundão. O velhinho bigodudo de bermuda roxa e meia verde chegou a beijar o troféu. O MEU TROFÉU. Maldito. Agora chega de ser bonzinho. Vamos jogar pelas regras do jogo, então.
Não deixo a faxineira colocar meu cartão no lixo, como fez das outras vezes. Tento guardá-lo no meu caderno sem que ela veja, mas antes que eu conseguisse fechar as páginas a velhinha veio me pedir o bilhete. Num golpe de sorte a loirinha de óculos aparece com novas apostas, fazendo com que a faxineira saia imediatamente de perto de nós, sem dizer uma palavra. Isso me deixou um pouco preocupado. "Dois por cartela. Na volta eu pego o dinheiro". Deveria ser nossa última rodada, visto que meu procurador ficaria sem fundos.
De toda forma, foi quando ficou claro na minha cabeça que eles já haviam nos descoberto. "Nos roubaram duas vezes! E é de propósito! Me faltava só o 30! É tudo armado! Tu viu aquela faxineira? Tu não pode mesmo guardar os bilhetes pra reclamar depois! Não adianta jogar, a gente não vai ganhar! Jamais sairemos vivos daqui se não ganharmos uma rodada!" eu disse. "Por isso que o troféu é tão importante. É o que eu venho te dizendo", começou meu procurador "Mas a culpa é desse velho ali", continuou, apontando o senhor bigodudo de meias verdes. "Precisamos tomar alguma providência", concluí.
Num movimento bastante estúpido e inocente deixei apenas dois reais sobre a mesa e empilhei as duas cartelas uma em cima da outra, de modo que a crupiê pensasse que eu estava comprando apenas uma delas. Milagrosamente, o movimento funcionou e passamos então para um score de zero a zero com o a partir de agora, CASSINO. Agora sim chegamos ao ponto de colapso, um momento de caos total. Estamos trapaceando no bingo, estamos roubando do JOGO LEGALIZADO. Meu Deus, a gente está roubando até do Governo Federal, é a Caixa Econômica que fiscaliza os bingos. Onde é que eu fui me meter?
Agora não há volta: precisamos seguir em frente e alcançar o nosso objetivo - ou morrer tentando. Este cassino havia mexido demais com nossos nervos após sucessivas derrotas e mudança de regras no meio do jogo. Hora de experimentar um pouco do seu próprio veneno.
O primeiro número detonou uma bomba nos meus tímpanos "Trinta. Três Zero". Começo a esmurrar a mesa enquanto grito amaldiçoando minha sorte. Meu procurador ri com desdém, marcando o número em sua cartela roubada. Um dos atendentes se aproxima colocando a mão no meu ombro "Procure se conter, senhor". Hum. É melhor mesmo. Não estamos em posição de despertar atenção de ninguém. Precisamos do troféu antes. Nossas cartelas vão se enchendo de manchas azuis e então acontece: BINGO. Um momento mágico detona a bomba final de adrenalina por todo o sistema nervoso. Meu procurador consegue se antecipar a todos e grita "BINGO" ruidosamente. Eu o sigo, enquanto batemos na mesa acompanhando os gritos. Um atendente se inclina em nossa direção, murmurando: "Agora tu grita linha". Imediatamente passamos então a gritar "linha", com o mesmo vigor.
Ninguém presta atenção. Todos continuam concentrados em suas cartelas. Uma sorridente ruiva baixinha requebra dentro do seu uniforme trazendo nosso passaporte para fora daqui: o TROFÉU. Agora estamos acima do bem e do mal: conosco ninguém pode. Tínhamos conseguido uma linha e o troféu. Precisamos sair daqui antes que alguém grite "bingo" e leve embora o nosso troféu. Nas nossas mãos um tremendo dilema: como tirar aquela traquitana dali sem que nos vissem? Segui marcando as duas cartelas enquanto meu procurador fazia um reconhecimento do lugar olhando para as janelas, portas e todas saídas possíveis do bingo. Tarde demais. Alguém havia sido mais rápido e sortudo e agora gritava a palavra mágica. Lá se vai nosso troféu. "Azar. Pelo menos agora podemos sair daqui sem problemas" falei, fazendo menção de me levantar. Foi quando a loirinha apareceu trazendo boas notícias - a linha valia cinqüenta reais. Nem havia nos entregado a nota e já perguntava "Vocês querem mais cartelas?" "É óbvio que queremos mais cartelas" bradou meu procurador.
A partir desse ponto, a montanha russa chegava ao fim de sua queda, o que sempre causa uma certa sensação de desapontamento. A próxima meia hora foi exatamente isso: rolando morro abaixo com o resto dos perdedores comuns. Vinte reais em apostas cada vez mais altas. A realidade voltando a nos assombrar à medida que perdíamos dinheiro e entrávamos num confortável limbo de final de noite. Impressionante como nessas horas a sensação de ter dinheiro pra perder é relaxante. Levantamos quase ao mesmo tempo, sem dizer nada e cambaleamos até a porta. Ninguém parecia afetado com a nossa saída. Algumas luzes nos atraíram num corredor que dava pruma escada. Um andar de caça-níqueis. Duas pessoas lá dentro. Gastamos algumas moedas de 25 centavos numa das máquinas mais mercenárias de todos os tempos e saímos caminhando de volta pra Cidade Baixa, atrás da minha viatura.
Trinta reais mais ricos fomos procurar meu carro nos estacionamentos oblíqüos. "Como assim tu não sabe onde tá teu carro?" berrava meu procurador. "Tu tem que saber onde tu estacionou teu carro!" Dobrei aleatoriamente numa esquina, meu procurador me seguiu. Minha viatura estacionada quase na esquina, justo do outro lado da calçada do estacionamento oblíqüo, uns cem metros à nossa frente. Foi então que notei um imenso ônibus estacionado na frente de um restaurante, onde lia-se em fonte Algerian azul:
"GRUPO MUSICAL SANTANA"
Avistei os dois coloninhos do outro lado da rua, atravessando em nossa direção. Antes que me vissem, entrei por um corredor que levava ao restaurante, seguindo a música de bailão e desviando dos alemães bêbados e sorridentes que se desequilibravam pelos cantos. Meu procurador chamou minha atenção prum cartaz na parede. "Parece que é o aniversário de 74 anos de uma tal de Mildred" ele disse. "Vamos entrar" eu propus. "Claro", ele deu de ombros "O máximo que pode acontecer é nos pedirem para nos retirarmos".
Entramos no restaurante e nos sentamos no balcão. Num palco improvisado seis ou sete alemãezinhos parecidos com os coloninhos dançavam um-passo-pra-lá, um-passo-pra-cá enfiados dentro de camisetas brancas com o mesmo logotipo do ônibus, segurando instrumentos coloridos e sorrindo. No chão, dezenas de senhoras de idade se abraçavam e sorriam. Espremidas em vestidos exagerados, suando, maquiagem borrada, caindo de bêbadas. Os homens permaneciam sentados nas mesas, rindo gordamente e enxugando as testas e pescoços com lencinhos. Ao contrário do bingo, a nossa chegada atraiu TODOS os olhares do recinto. Nem tanto por mim, mais pela aparência do meu procurador.
Aparentemente todos os presentes (incluindo o Grupo Musical Santana) se conheciam entre si mas dada a parca iluminação do ambiente combinada com minhas feições germânicas, eu tinha camuflagem suficiente. Meu procurador não teve essa sorte: destoava muito da multidão vestindo uma camiseta da turnê do Beck, pendendo grossas sobrancelhas escuras e medindo pouco mais de 1,60m. Todos os presentes (incluindo o Grupo Musical Santana) ficaram visivelmente desconfortáveis com a nossa chegada. Logo um garçom nos abordou "Vocês são convidados?" Pensei rápido "Da dona Mildred?" O garçom sorriu "Ah, só pra conferir..." Meu procurador ficou acompanhando o garçom desaparecer entre os alemães ensandecidos, então virou a cabeça pra mim e cochichou "Essa foi por pouco. Acho que estamos limpos. Aproveita que tu parece mais com essa alemoada aí e pede uma ceva. Não vão te cobrar".
Me virei pro barman "Quanto é a cerveja". Erro grave. "Vocês não são convidados?" Segundo erro grave: tirar os olhos dos olhos do inquisidor. Tentei consertar "Da dona Mildred?" O barman não pareceu convencido "Olha amigo, hoje estamos fechados. É um aniversário de uma senhora aqui, se tu quiser eu posso chamar alguém pra te explicar..." Pensei rápido de novo "Mas não vende cerveja?" Ele me olhou "Hoje não. Só amanhã". "Que pena" respondeu meu procurador "Nós íamos beber 30 reais aqui. Agora não vamos mais". E saímos pelo corredor do restaurante, jogando frases despretensiosas nas pessoas, do tipo "Eu perdi cinco mil no jogo, mas pior foi tu que perdeu em prostituição infantil". Aposto que trancaram a porta quando saímos.
Nenhum sinal dos coloninhos por perto, entramos no carro. Meu procurador me aconselhou várias vezes para descer na Oswaldo e beber o resto da noite na Lancheria, mas eu estava um pouco cansado, queria voltar pra casa. Esse pessoal da Oswaldo nunca decepciona: há tempos não via uma noite tão cheia. Punks lotando o Lola e o João, invadindo a pista. Parecia um daqueles domingos ociosos de 94. "Esses cumprem direitinho os preceitos da RELIGIÃO" falei. Deixei meu procurador quase na frente do Pronto Socorro e peguei meu caminho de volta.
Numa sinaleira próxima ao Estádio Olímpico encontrei um Palio branco parado. Não cheguei a ver o rosto do motorista que havia me desafiado no começo da noite e sabia que as chances de vir a encontrá-lo de novo eram quase nulas. Mesmo assim fiquei feliz ao ver aquele carro ali, justamente quando eu estava pronto para ele. Parei ao lado do Palio. Apenas eu e ele na rua. Nenhum sinal de carro em nenhuma direção. Ninguém na rua. Virei pro lado e fiquei encarando. Se fosse o meu desafiante ele iria me reconhecer.
Um sujeito desprezível ia nesse Palio. Rádio a todo volume num desses funks, camisa, vidro fumê, mascando chiclé de boca aberta. Virou a cabeça pro lado e viu que eu o estava olhando fixamente. Um pouco surpreso começou a acelerar e me encarar. Eu não mexi o pescoço. Permaneci olhando fixo pro motorista do Palio, que a essa altura começava a ficar nervoso, e olhava compulsivamente para os lados. Abri o vidro e coloquei o corpo pra fora. Seus olhos arregalaram, ele congelou. Eu disse "Ô", ele olhou pro sinal de novo "eu vou te pegar", e voltei pra dentro do carro, rindo.
Ele acelerou, sem esperar o sinal. Deixei ele correr. Quando o sinal abriu, saí em disparada atrás do Palio. Gato e rato, um jogo clássico. Não tirei os olhos do seu retrovisor, onde só via o reflexo dos seus olhos apavorados. Fiquei dando sinais de luz a cada cinco ou dez segundos. Ele tentou de todas as formas me despistar: dava sinal prum lado e entrava pro outro, desligava os faróis pra sumir nas ruas escuras, ficava ansioso quando eu parava atrás dele nas sinaleiras. Isso foi até o último sinal antes da minha rua, quando consegui parar ao lado dele, e um caminhão impediu que ele desrespeitasse o sinal. De novo me coloquei pra fora do carro e gritei: "Ô, amigo" Ele nem me olhou "o sinal vermelho é pra PARAR" Ainda tive tempo de vê-lo me fulminando com um olhar um furioso, enquanto o sinal abria e eu subia as ladeiras da Medianeira.
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