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Hoax
Publicado originalmente na edição 15 da Revista VOID, em abril de 2006

ATENÇÃO: Este é um texto 100% ficcional, publicado em formato jornalístico na edição anual de abril da Revista VOID, que tinha como tradição pregar peças nos leitores por conta do Dia da Mentira (Primeiro de Abril).

Em seu mais recente relatório publicado em março deste ano, a Internet Society (ISOC) - um dos mais importantes centros de pesquisa sobre a rede mundial de computadores - revelou um dado preocupante. Segundo o documento, mais de 80% dos e-mails em circulação atualmente não foram solicitados por quem os recebe, ou seja: são spams. Deste total, pouco menos de um terço corresponde a e-mails de divulgação de eventos e golpes variados com vírus do tipo "cavalo de tróia". Os dois terços restantes referem-se a e-mails do tipo hoax.

São as famosas lendas urbanas.

Ainda que pareça um número exagerado, não é difícil comprovar o quanto a pesquisa da ISOC está certa. Quer dizer: quem é que nunca recebeu um daqueles alertas sobre a futura cobrança dos serviços do Orkut ou do MSN? Ou uma denúncia sobre a utilização de carnes, como diremos, deveras "exóticas" no menu de uma famosa rede de lanchonetes? Isso pra não falar nos clássicos absolutos do gênero, como as explosões em postos de gasolina provocadas por celulares e as tatuagens infantis que podem viciar uma criança em LSD - a notória blue star tattoo.

Cedo ou tarde, todas essas histórias acabaram se revelando falsas.

Como você já deve ter percebido, o funcionamento de um hoax é semelhante ao de uma piada: cada vez que você a escuta ela fica menos engraçada. Por conta disso, conforme as farsas iam sendo desmascaradas, foram mudando não só os internautas, que começaram a desconfiar da autenticidade de certo tipo de mensagens, mas também os hoaxes, que precisaram ficar mais e mais sofisticados. A coisa cresceu tanto que, atualmente, já é possível fazer uma distinção por categorias. Há espaço para tudo: abaixo-assinados dos mais variados tipos, correntes de oração, pedidos de ajuda financeira, esquemas milagrosos de enriquecimento que baseiam sua eficiência no número de pessoas para os quais são enviados, notícias bombásticas completamente absurdas e textos aleatórios atribuídos a escritores renomados. Tudo mentira.

Além de entupir as caixas de e-mails de centenas de milhares de pessoas todos os dias, essa enxurrada de boatos circulando pela rede cria ainda um outro problema: fica cada vez mais difícil saber o que é verdade e o que não é.

Eis uma história:

Outro dia, um amigo que mora em Paris resolveu me encaminhar um e-mail que havia circulado por volta de 1999 como o grande hoax da década. A mensagem alertava para os perigos de se falar ao telefone enquanto se mantém o aparelho preso entre a cabeça e o ombro. Segundo o e-mail, um psiquiatra de 43 anos de idade completamente saudável teria sofrido um derrame após ter passado uma hora falando ao telefone nessa posição. O texto era muito bem escrito e as informações contidas nele pareciam bastante reais. Se eu não soubesse que aquilo era uma brincadeira, provavelmente teria acreditado.

Movido por uma curiosidade besta, resolvi pegar o único dado concreto no e-mail e jogar no Google pra ver o que acontecia. Pois foi então que aconteceu: o tal doutor Mathieu Zuber, que teria atendido o caso, realmente existe, e é um dos maiores especialistas em derrames do Sainte-Anee Hospital, em Paris. Procurando um pouco mais, descobri que o tal psiquiatra realmente sofreu o bizarro derrame, e que o fato está amplamente documentado em várias línguas e aparece em sites respeitados como o Science Daily e o da revista Isto É.

Conclusão: segurar o telefone entre a cabeça e o ombro, durante muito tempo, pode MESMO causar um derrame.

Foi então que me lembrei que, no fim das contas, era mesmo verdade aquele papo de que se pode usar a borra de café no combate ao mosquito da dengue. E aquele texto do Paulo Coelho "Obrigado, presidente Bush", era mesmo do Paulo Coelho e foi mesmo publicado no Le Monde, em março de 2003. Por fim lembrei que o Luis Fernando Verissimo jamais escreveu uma crônica chamada "Quase", mas mesmo assim o texto atribuído a ele circulou tanto na web que foi traduzido para o francês e acabou incluído em uma coletânea, lançada recentemente naquele país. Tudo verdade.

Portanto, seguindo as orientações do mestre William Shakespeare, que disse um dia que "toda superstição descende da verdade", resolvi investigar o quanto de verdade se esconde por trás de alguns dos mais clássicos boatos já divulgados pela web.

Traços de halotano e iodo nos lençóis

Antes de se tornar uma das lendas urbanas pioneiras na internet brasileira, a famosa história do "roubo de rim" já ocupava um lugar de destaque no imaginário popular. Duas versões eram as mais conhecidas: a do rapaz que conhecia uma bela mulher em uma festa e acabava dentro de uma banheira cheia de gelo com uma gigantesca cicatriz nas costas e um telefone para ligar; e a da criança que era seqüestrada em uma loja e reaparecia algumas horas (ou dias) depois, com uma cicatriz no mesmo lugar.

Na época em que a história surgiu, todo mundo conhecia alguém que tinha um primo que era amigo do vizinho de praia do cara que era amigo de infância de alguém que havia, de fato, passado por essa terrificante experiência. Mas a grande verdade é que essas pessoas jamais apareciam e, logo, todo mundo aprendeu a desconfiar dessas histórias.

De acordo com o delegado da Polícia Federal Marcos Torentelli, o crime, embora raro, existe. "O tráfico de órgãos é um crime discreto, difícil de detectar e combater, mas alimenta mercados bem específicos, e com lucros bastante inflados. Um rim humano pode alcançar mais de 15 mil dólares em países como a Tailândia, o Marrocos e o Chade, onde será usado com a finalidade de transplante; e quase 80 mil em um país como a Alemanha ou a Dinamarca, onde as pesquisas com a clonagem humana criaram esse tipo de demanda", afirma.

Enquanto a maioria das pessoas já se acostumou a reagir a qualquer relato do tipo como se fosse a maior cascata do mundo, C.S., 38 anos, funcionário da retaguarda de uma das maiores agências bancárias de Vitória, no Espírito Santo, não gosta de falar sobre o assunto. "Sempre que o cara conta uma coisa dessas, todo mundo fica tirando sarro, ninguém leva a sério", diz, enquanto acende um cigarro atrás do outro. Sua pele me parece muito seca e estranhamente pálida, e há vários hematomas em suas mãos. "Viu só? Isso é por causa do rim", ele me diz, enquanto aponta os machucados. "Mas quando aparece, eu sempre digo que me bati", completa.

Não sei se C.S. é amigo de infância do vinho de praia do amigo do primo de alguém, mas ele certamente tem um rim a menos. A cicatriz (muito maior do que eu imaginava), ao menos, existe. Não entendo profundamente de cicatrizes, mas esta parece muito mal feita, e sugere, definitivamente, algum amadorismo no processo todo. A visão do corte passa um forte desconforto e dá a clara impressão de que o órgão foi retirado de uma maneira bastante artesanal. "Dói?", eu pergunto. Ele puxa a camisa cobrindo a ferida e fica me olhando, meio de lado.

C.S. só aceitou conversar comigo graças à intervenção de um amigo. Penso que posso ter posto tudo a perder com o comentário, mas agora ele sorri. "Só quando eu dou risada", responde, enquanto termina de enfiar a camisa para dentro das calças e segura o cigarro com força entre os lábios. Durante alguns minutos falamos sobre amenidades variadas até que crio coragem suficiente para lhe perguntar aquilo que eu queria saber. Por um instante o tom da conversa se torna nebuloso, mas, aos poucos, C.S. vai se soltando.

Tudo teria ocorrido há cerca de 8 anos atrás, em uma boate em São Carlos, no interior de São Paulo. C.S. e colegas de trabalho haviam passado a semana recebendo treinamento em uma agência na cidade, e aproveitavam a sexta-feira para beber e se divertir em um lugar chamado Oasis Bar. Em algum momento dessa noite, uma mulher chamada Vanessa de Morais teria se aproximado e, meio desajeitada, pedido um cigarro a C.S. "Ela me disse que morava em Descalvado, que é uma cidade vizinha, menorzinha. Tava vestida bem simplezinha, tinha sotaque, toda meio tímida. E era bem bonita, né? Então eu comecei a puxar um papo", diz.

Quando perguntou se podia pagar uma bebida, Vanessa disse que não bebia. "Ainda pensei: mas que coisinha. Ela nem bebe", confessa. "Aí ela me disse que não bebia, mas podia pegar uma bebida pra mim, se eu quisesse. E acho que foi aí que eu me ferrei", decreta. Nas duas primeiras doses, nada de estranho. Mas na terceira, Vanessa demorou mais do que o normal para voltar do balcão. Os colegas de C.S. começaram a brincar, dizendo que ela não voltaria mais. Mas ela voltou. E com vontade. "Mal ela me deu o copo na mão e já partiu pra cima. Veio me beijando, me passando a mão. E a galera vibrando com aquilo, gritando, dando incentivo. Aí que o cara se perde, né?", lamenta.

"Quando ela finalmente me largou, eu fui dar um gole no uísque, e ela me disse: depois que tu terminar de tomar esse copo, eu quero ir contigo pro teu hotel. Aí eu nem pensei: virei tudo de uma vez", completa. C.S. diz não se lembrar direito do que aconteceu depois. Os dois saíram do bar e pegaram um táxi, mas ele afirma ter dormido assim que sentou no banco do carona, ainda antes de conseguir dizer ao motorista o endereço do hotel onde estava hospedado. "Apaguei. A gente atacou o táxi, eu abri a porta pra ela, ela entrou atrás, eu sentei na frente e capotei. Desliguei mesmo", diz.

No dia seguinte, C.S. acordou sentindo muito frio e com muita vontade de ir ao banheiro. "Tava me mijando", diz. À medida que foi recobrando a consciência, C.S. se deu conta de que não estava no seu hotel. Sentiu um cheiro muito estranho, "um cheiro de hospital" e, logo, percebeu que estava, de fato, em um hospital. "Quando eu tentei me levantar, senti uma fisgada nas costas, quase na bunda, e descobri o corte", diz. "Doía pra burro", recorda. Desorientado, C.S. chamou a enfermeira. "Ela me disse que me encontraram num hotel em Araraquara, pelado, dentro da banheira, e que a banheira tava cheia de gelo" diz. "Tinha uma folha de caderno pendurada no espelho dizendo que eu tinha que ir prum hospital ou ia morrer, então ela chamou o gerente", completa. "Quando eu perguntei o que tinham feito comigo, ela foi chamar um médico. Ele veio e me disse que tava tudo bem comigo, mas que tinham feito umas radiografias, e tinham descoberto que eu estava sem um dos meus rins", diz.

No quarto do Hotel Ravena, no qual supostamente o rim de C.S. teria sido removido, a polícia só encontrou traços de halotano - um conhecido agente anestésico - e iodo, comumente usado para desinfetar a parte do corpo onde será feita uma incisão cirúrgica. Os dados que constam nos registros de entrada preenchidos pelos hóspedes do quarto 704 eram, naturalmente, falsos.

Segundo os funcionários que os atenderam, eram três homens e duas mulheres extremamente educados e muito bem articulados. Deixaram o hotel no meio da madrugada e pediram para acordar o amigo que ficou dormindo no quarto apenas na manhã seguinte, para que tomasse o café. Em Descalvado, nunca se ouviu falar de nenhuma Vanessa de Morais.

Em janeiro de 2001, o caso foi arquivado pela Polícia Civil de São Carlos por falta de provas.

Quando “positivo” não quer dizer “bom”

Ao deixar uma das salas de cinema do Shopping Riomar após uma sessão de Clube da Luta numa quinta-feira de agosto de 2000, M.R., 41, decidiu aproveitar a trégua da chuva, dispensou o ônibus e resolveu ir caminhando até sua casa. "Aracaju não é uma cidade perigosa, então nem me passou pela cabeça que algo de ruim pudesse me acontecer", ela comenta, os olhos sempre baixos, como se estivesse procurando alguma coisa no canto da sala.

Quando começava a se aproximar da praça Fausto Cardoso, M.R. notou que outra pessoa vinha em sua direção, mas não suspeitou de nada até que fosse anunciado o assalto. "Na hora eu não entendi muito bem o que ele tinha tirado do casaco, se era um revólver ou uma faca", lembra. "Mas aí ele me disse que tinha AIDS e que era pra eu ficar bem quietinha, senão ele ia me picar com a agulha", diz. O agressor portava uma seringa cheia de sangue.

Era a primeira vez que M.R. sofria um assalto. Em pânico, ela abraçou a bolsa que carregava e tentou sair correndo, mas o bandido a impediu de fugir e a imobilizou com uma chave de braço. Depois de arrancar a bolsa das mãos de M.R., o assaltante enfiou a seringa em sua perna e injetou todo o líquido que ela continha. "Eu pedia pelo amor de Deus pra ele não fazer aquilo e ele só me dizia 'esse é o mundo real, tia.' Foi horrível". Confusa e aterrorizada, M.R. atacou o primeiro táxi que passou e foi até o pronto socorro, onde foi informada de que teria que fazer o teste dali a três meses para comprovar se havia sido, mesmo, infectada pelo vírus HIV.

Nas semanas seguintes, M.R. relatou o caso a diversas amigas que, por sua vez, relataram o caso a outras amigas, até que a história acabou caindo na internet. Mas o ruído na comunicação acabou misturando um pouco as informações. M.R. garante que o mito que fala sobre a pessoa que é infectada ao sentar-se sobre uma agulha escondida numa cadeira de um cinema nasceu com o seu caso. "Quando eu recebi esse e-mail, eu vi que era a minha história, mas confundiram tudo o que aconteceu."

Vários e-mails que descrevem o caso circulam pela internet, mas nenhum deles conta uma história parecida com a de M.R.. Em geral, as contaminações ocorrem quando uma pessoa senta-se em um banco de cinema ou metrô e sente uma fincada. Ao se virarem para ver o que as atingiu, encontram uma seringa e um bilhete com a inscrição "Bem vindo ao mundo real. Você agora é HIV positivo".

Quase cinco meses depois do ataque, M.R. fez o teste e descobriu ser HIV positiva. “Eu nunca vou me esquecer do que senti quando me chamaram pra salinha e tinha um psicólogo sentado do lado da médica. Ali eu já sabia que estava condenada”, diz M.R., contendo as lágrimas. Sete outros casos semelhantes foram registrados em Aracaju naquele ano, mas a polícia não conseguiu prender ninguém. Todas as outras mulheres atacadas apresentaram resultado negativo. As investigações continuam. O caso está registrado na 11ª Delegacia de Polícia Civil de Aracaju.

Na próxima edição: o caso do menino picado por uma cobra venenosa no setor de hortifrutigranjeiros de um grande supermercado de Porto Alegre e o empresário que ganhou muito dinheiro ajudando militares nigerianos a retirarem verdadeiras fortunas de seus países.

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