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O que há no gonzo?
Publicado originalmente no jornal Zero Hora, em 25 de fevereiro de 2005
Na semana que seguiu o domingo trágico em que o escritor norte-americano Hunter Thompson encerrou sua trajetória alucinada enfiando uma bala na cabeça aos 67 anos de idade, o que mais surpreendeu foi o destaque que a notícia recebeu na imprensa
brasileira. É, para dizer o mínimo, curioso, que um autor estrangeiro que foi praticamente ignorado pelas editoras durante tantos anos tenha arrebanhado um número tão expressivo de fãs e merecido tamanha comoção, especialmente quando o próprio mercado faz estimativas nada animadoras do número potencial de leitores existentes no país. O fenômeno reforça a pergunta levantada na época pelo jornalista Pedro Doria, em artigo publicado no site No Mínimo. Afinal de contas, o que há em Hunter Thompson?
Nascido durante a depressão norte-americana no estado sulista do Kentucky, Hunter Stockton Thompson desenvolveu sua obra em torno de algumas das obsessões mais familiares ao yankee médio. Bebedor inveterado e usuário das mais variadas substâncias ilícitas, Thompson tinha fortes convicções políticas e era um aficionado por armas e esportes. Crítico contumaz dos maus costumes e vícios de sua própria
sociedade, ele era acima de tudo um reprodutor eficiente dos mesmos defeitos que apontava, misturando de forma quase indissociável o crítico e o objeto da crítica, o que lhe garantiu uma espécie de imunidade soberana na terra do Tio Sam.
Se fosse apenas isso, certamente Thompson não encontraria admiradores além dos limites dos 50 estados da grande nação do norte, mas, a seu favor, ele ainda possuía um grande trunfo, comum a todo grande artista da palavra: Thompson tinha estilo. Tão peculiar que foi o principal (senão único) responsável pelo surgimento do seu culto, dentro e fora dos Estados Unidos.
Como muitos escritores de sua geração, Thompson iniciou a carreira escrevendo para jornais e revistas na década de 60. Enquanto Wolfe e Talese deliciavam-se com as liberdades ilusórias propostas pelo Novo Jornalismo e Burroughs e Kerouac estreitavam os limites entre a poesia e a prosa em suas pessoalíssimas narrativas beatniks, Thompson surgiu como o elo entre os dois mundos, criando, quase por acidente, o que se convencionou chamar de gonzo jornalismo. O termo designa um estilo de
grande reportagem cuja captação de informações é feita de forma
participativa, e cuja redação é apresentada em primeira pessoa, com
largo uso de digressões e sarcasmo, e na qual é muito difícil
discernir a ficção da realidade.
Se os praticantes do Novo Jornalismo seguiam uma série de regras e se
mantinham fiéis ao mais elementar dos paradigmas jornalísticos (a
distância entre o observador e o que é observado), Thompson queria
transpor a barreira essencial que o separava da ficção: o compromisso
com a verdade. Também chamado de jornalismo fora-da-lei, jornalismo
alternativo e cubismo literário, o gênero inventado por Thompson tinha
sua força baseada na desobediência de padrões e no desrespeito das
normas estabelecidas, o que contribuiu para que o seu criador logo se
tornasse um dos principais ícones da contracultura. Enquanto Truman
Capote esmiuçava os mais secretos pormenores de um assassinato com
pretensa neutralidade, Thompson foi morar durante dezoito meses com os
Hell’s Angels para fazer de sua própria experiência um raio-x preciso
de uma das mais perigosas gangues de motoqueiros dos Estados Unidos.
Foi o jornalista Bill Cardoso quem cunhou o termo gonzo em uma carta
que escreveu ao amigo: “Eu não sei que porra você está fazendo, mas
você mudou tudo. É totalmente gonzo”. Segundo Cardoso, a palavra
originou-se da gíria franco-canadense gonzeaux, que significaria algo
como “caminho iluminado”. Thompson adota o termo pouco antes de
aceitar o convite de cobrir a Mint 400, uma corrida de motos no
deserto de Nevada, para a Sports Illustrated. Na companhia de um amigo
advogado, ele parte em direção a Las Vegas, mas logo deixa de lado a
corrida para concentrar-se em uma profunda análise sociológica dos
viciados em jogo e drogas e todo o tipo de degenerado que se reúne em
volta dos cassinos. O artigo é recusado pela Sports Illustrated, mas
ganha destaque em duas edições da Rolling Stone, em novembro de 1971.
Logo, é editado como livro e transforma-se em sua principal obra, sob
o título de Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage Journey to the
Heart of the American Dream. Sua popularidade é tamanha que, em 1998,
a história ganha as telas de cinema com Johnny Depp no papel
principal.
Traduzido para o português pela Brasiliense em meados dos anos 80 sob
o título Las Vegas na Cabeça, o livro não atrai muitas atenções e logo
acaba saindo de catálogo. Sua obra amargaria cerca de vinte anos de
ostracismo para, somente em 2004, voltar ao mercado brasileiro através
da Conrad, atendendo uma demanda crescente de leitores, em sua grande
maioria muito jovens, nas faixas inferiores aos 30 anos. Mas como esse
público foi formado? O que explica esse fascínio pela obra de Thompson
entre os leitores brasileiros?
Em primeiro lugar, não é toda a sua obra que convence os leitores
tupiniquins. Na verdade, apenas seus primeiros livros, escritos há
mais de 30 anos, em pleno auge da contracultura, cativam as atenções
abaixo do Equador. Por estar tão associado ao nome do autor, gonzo
jornalismo virou sinônimo de relatos inconseqüentes de grandes
excessos – comportamento errático, desobediência, descrição extrema
dos efeitos dos mais variados tipos de entorpecentes. É uma literatura
confessional e sem censura, que fala a um público mais jovem, ainda
respirando os nervosismos e os brios adolescentes – e que combina
perfeitamente com as linguagens praticadas atualmente na Internet,
onde o gonzo encontra maior respaldo. Outra possível explicação para a
popularidade tardia do autor está diretamente ligada ao momento
cultural que vive não só o Brasil como o mundo, e que podemos definir
como a voyeurização da realidade. Numa sociedade em que os paparazzi,
reality shows e weblogs são vistos como ícones representativos, não é
de se estranhar que um estilo narrativo que ponha em primeiro lugar a
experiência pessoal do seu autor seja sucesso. Mas, sobretudo,
Thompson era, como dizia George Plimpton, uma “persona literária”,
alguém dotado de um inegável carisma, e com uma grande capacidade de
seduzir seus leitores.
O que há, portanto, em Hunter Thompson? Para o público brasileiro, não
muito além da figura que representa a quintessência do gonzo, esta
forma malcriada de falar sobre tudo, direto de nossos umbigos, sem
precisar se preocupar em levar nada muito a sério – e olha que isso
não é assim tão pouca coisa.
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