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Abelhas
Publicado originalmente na Revista Ficções, da editora 7 Letras, em dezembro de 2003
1.
Aprendi muito cedo a admirar o balé das abelhas. Ainda hoje passo horas observando seus movimentos suaves através do ar, como se deslizassem por um escorregadio e invisível caminho de mel. Insetos são criaturas admiráveis, todos eles. Besouros, formigas e borboletas. As abelhas são as minhas preferidas. Sempre sonhei ter seus olhos furiosos, seus pêlos em listras. Participar dos rituais sibilantes ao som dos graves ronronares de suas asas. É de uma beleza única a complexa malha de relações e significados que orienta a sociedade das abelhas e, ainda que muito se especule a respeito, pouco se sabe com certeza. Desde muito pequeno quis ser uma abelha: suicidas elegantes sem consciência das conseqüências de seus atos. Protegidas por um mistério mais que milenar.
Capturar uma abelha não é muito difícil quando chega o verão. Uma lata amassada de refrigerante alguns minutos sob o sol, mãos ágeis e um pouco de paciência. Entre os berros de uma cigarra escondida na grama, a sua condição sela o destino. Não há motivo para negar o instinto. Funciona todas as vezes. Perdem-se poucos minutos de uma vida aí e então resta-nos dar cabo do prisioneiro. Se é uma fêmea, é preciso espetá-las pelos ventres com alfinetes e separar suas pernas, uma a uma. Extrair-lhes o ferrão com um pedaço de algodão molhado com álcool e então esperá-la morrer. O ataque é a melhor defesa. Não deixarei que me machuquem outra vez.
Para vencer as abelhas criei meus próprios segredos. Minhas próprias leis. Minha própria sociedade, esta tão secreta que não permitia mais que um sócio em seus quadros. Aos vinte e poucos, eu presidia e governava uma maciça campanha contra o inimigo alado. Os machos capturados eu conservava mergulhados em uma camada de adesivo plástico dentro de frascos de vidro, tudo em franca exibição em uma prateleira iluminada perto da janela. Que servisse de exemplo a todas as outras que ousassem me agredir. Em caixas de fósforos, pequenas cabeças de abelha formavam figuras geométricas. Às vezes, formigas roubavam uma ou outra peça para se alimentar. Eu nunca as culpei. Mas também nunca perdoei suas pequenas falhas.
Encontrei uma formiga levando uma das minhas cabeças de abelha para o formigueiro. Segui o seu caminho, ensopei o monte de terra com benzina e deixei cair um fósforo aceso. Talvez eu as tenha ouvido gritar, talvez tenha sido apenas a minha imaginação, mas a verdade é que foi um espetáculo muito bonito. Dezenas de efêmeros focos de incêndio ardendo em todas as direções como em uma noite de São João que despencou do céu. Elas podem não ter entendido o que eu fiz por elas, mas me orgulho do que eu fiz por todas: eu as libertei. Todas aquelas pobres princesas, escravas de uma rainha preguiçosa e gorda agora estão livres, mordendo os calcanhares de todos os santos.
2.
Foi um colega meu do tempo de faculdade quem me convidou pra ir à reunião, dando uma série de orientações misteriosas e sem muito nexo. Ele me pediu que não comentasse o assunto com ninguém e prometeu que tudo ficaria mais claro quando eu recebesse uma carta sem selo dali a uns dez dias. Nem eu sabia o que esperar, mas esperava o que quer que fosse com uma certa urgência. Meu dia de sorte havia chegado. Esta repentina fortuna, entretanto, era o que menos me intrigava. Estava mais preocupado com a mudança que havia se instaurado naquele que, um dia, já considerei meu inimigo. Apesar de toda a mágoa e o rancor, foi ele quem me reconheceu na fila do trem. Foi ele quem fez o convite e pagou o almoço. Foi ele quem me deu a carona até a Zona Sul. Mas acima de tudo, foi ele quem adivinhou a minha desesperada vontade de pertencer a qualquer destino que me revelasse aquela carta. O mundo estava pagando, enfim, a dívida por todos estes anos em que vivi à margem de qualquer que fosse o segredo escondido naquela carta? O meu dia de sorte havia mesmo chegado.
Era uma quarta-feira. Ouvi o barulho da dobradiça metálica da caixa do correio. Sem selo conforme eu já a esperava, exibia um grafismo moderno inspirado na escola expressionista alemã fechando as abas. Descolou perfeitamente. Uma folha cuidadosamente dobrada, de um papel timbrado era o que continha. No cabeçalho, o sigilo lembrava um inseto alado primitivo. Havia uma sigla. Mais de dez letras. Impresso em fita de carbono, o número 39 e um endereço. Letras míudas recomendam a destruição da carta, consumida pelas chamas depois de quatro ou cinco leituras. Não mais que seis.
Quando eu tentei fumar Marlboro, também acreditava no poder dos jeans e dos óculos escuros. Ainda uso os óculos mas cada vez tenho mais certeza de que é errado acreditar em denim. Hoje vou usar risca-de-giz e cocaína: é assim que se causa uma boa impressão. Viu como não foi tão ruim essa tatuagem no ombro? Uma cabeça no ombro é uma vantagem que agora você tem sobre os demais. Especialmente quando ela tem estes pêlos, estas antenas e até mesmo estes olhos furiosos das abelhas.
Decidi dirigir pela costa. O caminho é mais longo porém rico em quartéis. Com sorte dá pra ver um tanque de guerra manobrando, um jato sendo limpo, um exercício sendo executado. Não esta noite. Apenas uma guarita esquecida no meio das árvores e o mesmo olhar irado das abelhas na fronte do soldado perdido no meio da noite. Nossos olhares se cruzaram e foi precisamente neste momento que me senti mais afastado da espécie humana do que em qualquer outro momento da minha vida. Pensamentos sobre assassinar aquele soldado em uma variedade incrível de situações me ocuparam até avistar algum movimento de gentes, som e luzes no final da última curva da Pedra Redonda.
No topo da colina, perturbada pelos perfumes de um jardim à noite, surge a casa. O mesmo sigilo da carta no portão. Dois homens me fazem descer do carro e me acompanham até a porta. Permanecem comigo enquanto toco a campainha. A porta se abre. Meu pai é quem atende. Atrás dele posso ver minha mulher andando pra lá e pra cá praticamente nua, meu irmão sem um braço e muitas outras pessoas que conheci em diferentes fases da vida vivendo situações perfeitamente fantásticas. Escuto muitas vozes familiares nas gargantas de cavalheiros grisalhos que jamais havia visto. Sorriem, comem e bebericam de lá pra cá. Será que é isso que chamam de eternidade? Me perguntam a senha. Digo "39". Depois disso não me perguntam mais nada.
3.
Ganhar um cadáver é muito mais que uma gratificação ou um bônus: é um gesto de reconhecimento pelo trabalho bem feito. Por isso sempre miro na cabeça, bem no meio da testa. Não é um disparo difícil quando se está acostumado. A idéia é fazer com que a bala atinja o alvo de baixo pra cima, para que o nariz levante com o impacto e puxe o peso do corpo para trás. Isso economiza o preço do silêncio nas lavanderias. Sabe como é: não se pode confiar em lavanderias. Bom, não se pode confiar em ninguém, é verdade, mas especialmente não se pode confiar em lavanderias. Além disso uso sempre uma bala comum, de calibre baixo. Geralmente 22. Essas são melhores porque ficam presas ricocheteando na caixa craniana, botando o cérebro no liqüidificador e causando muito menos sujeira do que uma dumdum que explode uma cabeça.
A gente pode pegar o que encontrar no cadáver. Pra eles não importa: o que importa é que tá morto. Tá morto? Então eu não quero nem saber quantos dedos ele têm, se ele tava de sapato ou se tinha uma mina junto. O que vier a mais é teu. Graças a isso recuperei todos os meus dentes em pouco mais de dois meses. Já o olho esquerdo continua me faltando. Dizem que é por isso que atiro melhor, não tenho que compensar a mira. Não sei. Sei que sou bom nisso e gosto de ser pago por um trabalho bem feito, então tou feliz aqui. E por estar feliz aqui é que não quero perder essa boca.
Gostei daquele terno e daquele par de óculos. Até mirei na fonte pra não estragar a armação. Fiquei também com a cocaína que tinha no bolso, umas 20 gramas. Cheirei um pouco, passei o resto pra frente. Mas aquele filha da puta era forte, viu? Quando eu comecei a tirar o casaco, ele ainda tava resmungando alguma coisa. Uma bala no meio da testa, ele sabia que estava morrendo e não conseguia dizer nada. Se cagou todo de medo. Tava chorando também. Que merda. As piores mortes são as que não estão nos planos. Idiota. Mais um trinta e nove. Mandaram ele pra morrer. História bem comum: viu alguma coisa que não devia, falou alguma coisa que não devia, se meteu com alguém que não devia, confiou em alguém que não devia. Certo que caiu no papinho da sociedade secreta. Sempre funciona. É uma sacanagem se valer da boa-fé das pessoas, mas eu não posso questionar. Eles é quem me pagam. Não quero nem pensar que é o dinheiro de pessoas com mentes tão perversas que alimenta a minha família. Eu ponho comida na mesa. Ponto.
Terninho risca-de-giz novinho: é meu. Oclinhos trimassa cheio da onda: é meu. Agora vem a parte fudida: esquartejar o corpo e embalar a cabeça com papel filme. É como eles pedem. É como eu faço. Foi muito estranho encontrar aquela cabeça de abelha desenhada no ombro do cara. Já vi muita coisa esquisita por aí, mas esse lance da abelha me incomodou pra caralho. Aquela merda ficou lá me olhando e eu não tive dúvida: comecei pelo ombro.
Cortei as bolas e o cacete em pedacinhos pra mais tarde acrescentar ao strogonoff. Eu fazia isso todas as vezes. Eles nunca pediram. E também nunca suspeitaram.
4.
Foi praquele inverno que me prometeram a minha transferência mas as minhas esperanças se desmanchavam como as folhas que aterrissavam por todo o pátio, estranhamente bonito nessa época do ano, a essa hora do dia. Aqui a gente tem que matar o tempo antes que o tempo mate a gente. Tem quem esculpa os músculos com pesos, quem abuse dos cus dos novatos, quem queime sua vida na ponta de uma brasa qualquer. Eu me corto com o meu canivete, que escondi da revista engolindo-o dentro de um saco plástico preso por um barbante atado a um dos meus molares.
No meu corpo só desenho abelhas. É tudo que eu consigo desenhar. Enxames de milhares de pequenas abelhas adornando das omoplatas até as costas da mão, gigantescos e belíssimos assassinos dourados com seus olhos frios, quase tão frios quanto os do infeliz que eu acompanhei até a porta pouco antes do tiro fatal do filho da puta que me colocou aqui. Quando o cerco aperta, a corda sempre quebra na ponta mais fraca: alguém precisava assumir a culpa. Como soldado leal, aceitei morrer pela minha causa, defender a minha rainha. Quando vieram me levar quis dar um motivo real para ser levado: eu sou leal mas não conto mentiras. O caolho nem imaginava o que o esperava aquela noite. Se lançou com fúria sobre o homem ainda agonizante que acabara de alvejar com um tiro mal direcionado que havia acertado a base do pescoço, estourando a jugular e manchando miseravelmente de sangue o belíssimo terno bege de microfibra.
Profundamente irritado, ele chutava violentamente as costelas de um 39 inutilizando ainda mais as suas vestes. Foi quando eu o acertei com a coronha da pistola que ele mesmo havia me dado para segurar. Em seguida descarreguei todo o pente no outro cretino que fazia a escolta dos candidatos. Ele nunca me disse o seu nome, mas tenho certeza que me mataria se eu não o tivesse matado.
Ainda desacordado, enfiei o caolho num daqueles tanques que ele usava pra ferver os cadáveres - acho que pra ficar mais fácil de fatiar, sei lá - e comecei a cobrí-lo lentamente com os galões de cola que descobri escondidos no porão. Ele recuperou os sentidos com a cola já quase o sufocando e começou a se debater. Em vão. Deve ser horrível morrer assim. Ainda vi quando ele prendeu a respiração poucos segundos antes da cola o soterrar por completo e fiquei só esperando que o corpo o forçasse a buscar oxigênio novamente. Sugar cola para dentro dos pulmões, queimando a laringe, a faringe e o esôfago, injetando os olhos com sangue que nunca sairia do globo ocular. Deve ser foda pra caralho morrer desse jeito. Ficou lá, emparedado num disco translúcido de adesivo plástico, como um inseto, um feto, um exemplar de laboratório. Achei bonito. Fiquei sentado esperando alguém chegar. Não resisti quando quiseram me levar.
5.
Teve um dia que eu acordei mais cedo que todo mundo e fiquei olhando os outros presos dormirem. Pensei em como seria fácil acabar com todos eles, como não eram nada diferentes de todos os insetos que eram pisoteados aos milhões nos caminhos apressados de estudantes, homens de negócio, garotas de programa e simpáticas velhinhas. Procurei afastar os pensamentos ruins da cabeça me picando com o que quer que tinha sobrado na seringa. O problema de se tornar um viciado é que você não consegue parar de se masturbar: estou sempre sujo de sêmen. As abelhas e os outros presos sentem o cheiro. Os malditos insetos deixam suas entranhas penduradas no meu corpo, um pequeno açougue nos braços e nas pernas. As outras abelhas me cheiram como se eu fosse um carniceiro. Elas sempre me vêem como inimigos. Isto é um problema. Outro problema são as bichonas, que vêm se esfregar na hora de tomar sol. Todo dia eu tenho que quebrar um braço espertinho que vem me apalpar os testículos. Chega. Resolvi que hoje vou tirar esse cheiro de sexo e morte de mim.
Enquanto todos marcham cinzas e cheios de más intenções para o pátio, eu abro a garrafa e deixo o líquido gelar minhas mãos, meus braços, meu peito. Passo os dedos molhados por entre os fios de cabelo, que enroscam-se impedindo a sua passagem. Ensopo cada peça de roupa que uso: camiseta, calças e calçados. O dia está mesmo muito quente. Finalmente me sinto limpo. A abstinência da nicotina fala mais alto e resolvo também ganhar o pátio para fumar o último Marlboro da carteira. Sol forte lá fora, vou usar meus óculos. Tirar uma onda com esse óculos balaqueiro. Onde é mesmo que eu botei o meu isqueiro? Meu último cigarro. O último dia nesse buraco horrível: não quero mais ter de dormir cobrindo os ouvidos para que as baratas não se abriguem neles durante a noite e comecem a se alimentar das minhas memórias. Não quero mais ter que alimentar esperanças vazias, passar madrugadas em claro injetando bromato e gangrena nos braços. Não quero. Uma faísca deve bastar - eu penso - e uma faísca por fim é o que fatalmente me basta.
Começo a correr antes de ouvir o rugir do fogo explodindo em câmera lenta. A primeira onda demora uma fração de segundo para esquentar a pele. Nesse instante, nesse pequeno abismo entre o suspiro e o urro de dor eu caio. E então não sinto mais dor e posso continuar correndo pelo corredor. Troco nanossegundos de olhos de terror com os outros presos. Eles sentem medo das minhas gargalhadas. Eu sinto a roupa gravando à fogo na pele. A gordura do rosto começa a pingar no meu peito e eu sorrio um sorriso cada vez mais aberto. Parece ruim, não? Mas eu me sinto bem. Me sinto feliz. Continuo meu trajeto em direção ao pátio e quando finalmente os raios de sol me atingem, eu me transfiguro. E pela última vez na vida, então, me permito arder sob a atenção de todos os olhos fascinados que ali havia, como uma noite de São João que houvesse despencado do céu.
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