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Digital Junkies
Publicado originalmente na edição 18 da Revista VOID, em agosto de 2006
Não é preciso fazer um ESTUDO para descobrir que um ESTUDO pode provar QUALQUER coisa. Pense nos vários PAPOS baseados em ESTUDOS que tentaram atirar pra cima de ti nos últimos anos. Há tantos estudos dizendo que beber álcool, café ou comer gordura faz MAL quanto dizendo que faz BEM. Meu ponto é: qualquer coisa pode ser afirmada a partir de um ESTUDO, bastando que o autor faça a CORRELAÇÃO entre os dados dentro da AMOSTRAGEM mais conveniente - pra usar o JARGÃO da estatística. É aquela história: quem procura, acha.
Se você quiser provar que o fumo pode reduzir os efeitos de bebida alcoólica, que homens com fome preferem as gordinhas, ou que a Jennifer Aniston tem as pernas mais perfeitas de Hollywood, basta definir um MÉTODO e fazer um ESTUDO que você vai conseguir.
Duvida? www.insanus.org/mondoestudo.
Outro dia rolou todo esse PAPO (baseado em nenhum estudo, diga-se) que a geração que viveu a infância nos anos 80 foi a última geração ANALÓGICA. Quem nasceu dos anos 90 em diante é DIGITAL, ou seja: não conhece um mundo sem celular e computador e quase não se lembra de um mundo sem internet. Isso me lembrou de um ESTUDO que eu li outro dia que dizia já ser possível identificar os primeiros casos de um novo tipo de VÍCIO, que inclusive provocaria sintomas muito similares ao da falta de ÁLCOOL ou CIGARRO em uma eventual uma crise de abstinência: o vício em INTERNET.
No Japão já teve gente MORRENDO de exaustão por passar tempo demais na frente do computador. Recentemente, o usuário brasileiro médio (em sua grande maioria, crianças e adolescentes) ultrapassou o japonês em número de horas semanais na frente da telinha. Será que devemos nos preocupar? Não sei. Melhor fazer um ESTUDO.
B.C., 16
Eu já esperava por uma série de surpresas quando decidi conversar com minha prima em busca de informações sobre os seus (intensos) hábitos digitais, mas nada poderia me preparar para o que ela me disse quando perguntada sobre o porquê de ter abandonado os esportes que praticava até pouco tempo atrás: "Tenho medo de estar com tendinite no ombro". Bianca Czarnobai de Jorge, 16 anos de idade e uma suspeita de tendinite no ombro. "Não fui no médico ainda, mas o ombro dói, às vezes. Acho que é de tanto usar o mouse".
Desde os 4 ou 5 anos de idade, um dos então pequenos bracinhos de Bianca já contraía os músculos para arrastar o ponteiro do mouse sobre os pixels na tela, no laboratório de informática do Santa Rosa de Lima. De lá pra cá, já são quase 12 anos de uso crônico e crescente do computador, que evoluiu de eventuais sessões de joguinhos para longos períodos nas profundezas de sistemas complexos de relacionamento e comunicação, como o Orkut e o MSN.
Não é de se estranhar, portanto, que grande parte de sua vida (em torno de 8 horas por dia) gravite em torno deste prodígio da tecnologia, e que o seu ideal de diversão, atualmente, seja "qualquer coisa relacionada ao computador". Para uma menina como Bianca, ele é o seu principal veículo de comunicação. "Num dia de chuva, por exemplo, não dá pra sair pra fazer nada na rua, mas dá pra ficar no computador conversando com os amigos". Aliás, com as AMIGAS. Bianca me alerta para o fato de que meninas costumam ficar mais tempo do que os meninos no MSN por dois motivos essenciais: 1) meninos jogam futebol; e 2) "é mais barato FOFOCAR via MSN que por telefone".
A exemplo do primo que a INTERPELE, Bianca se alimenta enquanto usa o computador - e, ainda que tenha desenvolvido algumas técnicas bastante interessantes nessa prática, se alimenta MAL. Um exemplo: "Trakinas combina com computador, porque não faz tanto farelo quanto o salgadinho, nem suja e engordura o teclado". Também a exemplo do mesmo primo supracitado (que sou EU, caso você não tenha prestado muita atenção no começo da leitura), Bianca já desenvolveu uma dependência pelo computador. "Uma vez eu fiquei duas semanas sem e quase enlouqueci". Para ela, na ausência do computador, a TV a cabo ainda é um paliativo que entretém, mas jamais substitui. Mais recentemente, ela me revela, ficou apenas 3 dias sem computador e se sentiu meio perdida, sem saber o que fazer. "Sofri", ainda a ouvi dizer.
Hordas imensas de terapêutas e antropólogos mal terminam as linhas acima e já sentem os pêlos das costas se ERIÇAREM como gatos nos acuados, acreditando terem descoberto um perfeito exemplo de suas elocubrações teóricas sobre a alienação da juventude.
Eu digo "nonsense".
De todos os amigos da sua lista de contatos no MSN, ela não conhece apenas três: um indiano, um japonês e um PARANAENSE. O uso precoce e extenso da internet e o interesse pelas letras das músicas que ouvia melhorou seu inglês e permitiu que pulasse níveis no curso que faz. O interesse por música, inclusive, deu a Bianca um gosto muito eclético. Enquanto conversávamos, de trilha sonora rolava música clássica, funk, rock, psy, Norah Jones e Jack Johnson. Como ela descobre essas músicas? Em rádios online, baixando mp3, na TV a cabo e, sobretudo, nos mp3 players dos AMIGOS, que costuma ouvir depois das provas.
É o Maurício, o fotógrafo que me acompanha quem fala, enquanto me dá uma carona para a próxima entrevista, que ela faz um "uso inteligente da internet". Eis aí uma verdade: ao contrário do que temem especialistas, a proximidade da internet não a afastou do mundo real. Para os trabalhos de colégio, Bianca não se fia apenas no Google e na Wikipedia - também usa enciclopédias e dicionários instalados no computador. Enquanto conversa com as amigas no MSN, costuma ler jornais online e livros disponíveis no Dominiopublico.org.br. Quando não está conectada, lê Superinteressante, Veja e Capricho. E veja só: não vê muita MTV porque "MTV emburrece. É muito mais FOFOCA que música em si".
Ah, mulheres.
A eterna contradição.
Mas isso não é nem de longe culpa do computador, vamos admitir.
B.A.C. 12
Antes mesmo que eu pudesse perguntar qualquer coisa, ele puxou o celular do bolso - um daqueles modelos antigos, quadradões e surrados - e começou a reclamar do aparelho, num misto de deboche e vergonha. Bruno Albertuni Campello tem apenas 12 anos, mas desde os 9, uma de suas diversões preferidas é pesquisar modelos de celulares na web. Proprietário de um moderno Nintendo DS e um PS2, atualmente, um PS3 e um Xbox 360 disputam o título de sonho de consumo com um sofisticado Palm Blueberry, da RIM, e um celular com display colorido, câmera e possibilidade de enviar fotos.
Há cerca de dois anos, Bruno descobriu os MMORPGS e, com eles, mudou completamente os seus hábitos internéticos. Ainda que use a web para eventuais pesquisas no Google e o Power Point para a confecção dos trabalhos para a escola, a maior parte das 8 horas diárias que passa em frente ao micro, atualmente, é dedicada aos jogos online. Mesmo as tradicionais ferramentas de comunicação, como o MSN e o e-mail perderam espaço para jogos como o Ragnarök, onde também é possível conversar com quem está conectado. "Parei de usar o MSN pra poder jogar mais". A maior parte de seus amigos é adepta dos MMORPGS. Sobre aqueles que não são, Bruno diz que é porque ainda não jogaram. "Todo mundo que joga umas 3 partidas não larga mais." Bruno não costuma comer enquanto usa o computador "porque isso me faria perder um tempo no qual eu poderia estar jogando" e reconhece ficar brabo quando não lhe permitem usar o Vivo Zap - um aparelho que permite que se conecte um notebook à web de qualquer lugar. Também é definitivo ao dizer que: "Por mim, só sairia da frente do computador para o básico - comer, dormir, escovar os dentes..."
Neste momento, posso visualizar uma centena de psicólogos e outras dúzias de sociólogos se horrorizando e fazendo previsões pessimistas a respeito do futuro deste pobre menino.
Eu digo “nonsense”.
Para que você também possa dizer o mesmo, vale a pena falar que o Bruno sai da escola às 18h, mas sempre pede para ser buscado meia hora mais tarde porque acha divertido ficar brincando no pátio com os amigos. Também vale lembrar que ele joga futebol regularmente e pretende jogar vôlei em algum clube futuramente. Usa muito mais o celular para CONVERSAR com os amigos que não são muito ligados na web (sim, eles existem!) do que para mandar mensagens. Costuma ENCONTRAR-SE com os amigos para ir ao cinema e a parques de diversão "com aqueles brinquedos que te deixam de cabeça pra baixo 10 vezes". Também vale dizer que, desde o ano passado, os amigos de Bruno organizam festas, que, fora a ausência de um ou outro VENENO, não diferem muito de uma festa típica do mundo adulto: eles conversam, dançam e se divertem. O dinheiro do ingresso (R$ 10) serve para cobrir os custos com o DJ (um adulto, que toca de tudo um pouco, principalmente funk e rock) e a comida.
Vale ainda dizer que, mesmo que seja adepto confesso dos Corujões (das 22h às 07h) e Corujinhas (das 19h às 00h) para jogar Counter Strike nas LAN Houses da vida, Bruno afirma que faz isso porque é uma boa oportunidade para conhecer pessoas, jogar em grupo "porque é mais divertido” e perguntar dicas para jogadores mais experientes. E para encerrar com chave de ouro, Bruno resume a questão afirmando que o computador sem internet seria uma invenção “horrível”, o que nos leva à seguinte (e evidente) conclusão: sem PESSOAS para operá-los, os computadores não são NADA além de máquinas frias e sem graça.
MMORPG - (Massively ou Massive Multiplayer Online Role-Playing Game ou Multi massive online Role-Playing Game) é um jogo de computador e/ou videogame que permite a milhares de jogadores criarem personagens em um mundo virtual dinâmico ao mesmo tempo na Internet. * fonte: WikiPedia
TIBIA - RPG online tradicional, situado dentro de um contexto medieval, no qual se pode escolher uma porrada de "mundos" diferentes para se explorar. É o primeiro a desenvolver uma versão especial para ser jogada com celulares em qualquer parte do mundo, chamada TibiaME (Micro Edition). Possui módulos gratuitos e pagos, sendo que nos pagos o jogador tem uma série de vantagens por um tempo determinado. O plano mais barato sai por cerca de R$ 60, e o mais caro chega a algo em torno de R$ 180. Todo em inglês.
FATOR GOOGLE: aproximadamente 7 milhões de ocorrências
FATOR BRUNO: jogou por pouco tempo, mas gastou cerca de R$ 90 para desenvolver habilidades e comprar armamentos.
RAGNARÖK - Baseado em um mangá coreano de mesmo nome que mistura mitologia nórdica e oriental, Ragnarök conduz o jogador pela terra de Rune-Midgard, um mundo mágico de possibilidades quase infinitas. A inscrição é gratuita, e o jogador tem 20 horas para conhecer o mundo de Ragnarök. Depois disso, é necessário adquirir créditos para seguir jogando. O pacote mais barato, de 12 horas, sai por R$ 6,90 e o mais caro, de 90 dias, por R$ 39,90. Todo em português.
FATOR GOOGLE: aproximadamente 10 milhões de ocorrências
FATOR BRUNO: em dois meses, atingiu o level 74 de 99 (recentemente modificado para 255) e já gastou, até agora, cerca de R$ 80.
GUNBOUND - Combina estratégia e ação e simula um torneio de luta no sistema solar de Round, qual cada jogador pode escolher uma máquina de batalha chamada MOBILE. O Gunbound é gratuito, mas existe a possibilidade de se converter dinheiro real em CASH, a moeda corrente no jogo, que permite ao jogador comprar mais itens e habilidades para o seu MOBILE. O pacote mais básico sai por R$ 25, e o mais caro, (ou SUPERCASH), por R$ 145. Todo em inglês.
FATOR GOOGLE: aproximadamente 17 milhões de ocorrências
FATOR BRUNO: Gastou cerca de R$ 200 para desenvolver habilidades e comprar itens.
GRAND CHASE - Jogo de luta com gráficos inspirados nos mangás japoneses. Tem vários elementos de RPG clássico, como o desenvolvimento de habilidades, mas centra suas atenções mais na AÇÃO que na ESTRATÉGIA propriamente dita, indo na contramão da maioria dos jogos online mais populares no momento. Gratuito e todo em português.
FATOR GOOGLE: aproximadamente 26 milhões de ocorrências
FATOR BRUNO: em apenas uma semana, Bruno chegou ao level 12.
COUNTER STRIKE - O mais popular dos jogos online de computador, freqüentemente citado como grande responsável pela popularização das LAN houses no mundo. É um jogo de tiro em primeira pessoa, no qual duas EQUIPES (terroristas versus anti-terroristas) travam um confronto armado. Para jogá-lo, é necessário comprar o jogo Half Life (em sua segunda edição, custa em média R$ 100) e então baixar o MOD para CS na web.
FATOR GOOGLE: aproximadamente 60 milhões de ocorrências
FATOR BRUNO: Não sabe precisar o quanto gastou em horas de LAN Houses, já que não possui o jogo em casa, mas está se tornando um grande especialista em headshots e humilations (quando um jogador mata o outro usando apenas uma faca).
INDÚSTRIA BRINQUEDOGRÁFICA
Independentemente do sexo, cada nova geração desenvolve cada vez mais cedo o interesse pelo manuseio de mouses e teclados. Desta forma, parece óbvio concluir que os brinquedos tradicionais vem perdendo cada vez mais espaço para os gadgets tecnológicos. Mas a indústria de brinquedos não está DE TOUCA, e a maior prova disso é o grande número de empresas que desenvolveram imitações de NOTEBOOKS para a faixa dos 4 aos 7 anos - justamente a idade em que a maioria das crianças se aproxima mais SERIAMENTE do computador.
Há uma extensa gama de modelos disponíveis no mercado. Os mais bobinhos, como o Notebook infantil da Xuxa, produzido pela Candice, e o Mega Byte, da DTC, tem mais cara de mini-game que qualquer outra coisa. Já os mais robustos, como o Laptop Champi X18 ou o Laptop Desktop Accelerator Eclipse, ambos da Oregon, trazem dezenas de atividades diferentes e, numa olhada rápida, podem enganar o observador mais descuidado. O Desktop Accelerator Eclipse, inclusive, lembra MUITO o design de um PowerBook, da Apple.
Para a faixa etária dos 7 aos 12 anos (um perfil essencialmente escolar, que, em geral, já está completamente envolvido pelo videogame e, mais ainda, pelo computador), os desafios da indústria BRINQUEDOLÓGICA são ainda maiores, sobretudo porque agora ela passa a competir diretamente com novos objetos de culto do pré-adolescente, como os celulares e mp3 players.
As principais saídas seguem uma lógica que impera no mundo do RPG: os colecionáveis. Bonequinhos do estilo Commandos em Ação agora são chamados de "figuras de ação" (termo correspondente ao YANKEE action figures) e, em muitos casos, reproduzem personagens de famosos mangás ou animes. Sets de cartas relacionados a RPGs (online ou não) e card games (como o Magic The Gathering, por exemplo) também tem grande apelo nessa faixa etária: são as FIGURINHAS do novo milênio, mas numa pilha meio SUPER TRUNFO, saca?
Existe ainda a categoria quase SURREAL dos aparelhos eletrônicos musicais que misturam diversão e funcionalidade, como o Gravador Karaoke da Barbie, da Koraicho e o Make Mixer, da Gemini, que não só reproduz CDs como ainda simula um híbrido de SEQÜENCIADOR e mesa de efeitos com 297 bases de som. Em TEORIA é uma boa idéia, afinal de contas o consumidor desta faixa tem, em TEORIA, um interesse grande por música e, em teria, em TEORIA, o desejo de criar suas próprias músicas. Em TEORIA. Agora, se funciona na PRÁTICA, eu não sei.
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