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Abjeto Abigeato
Publicado originalmente na coletânea Dentro de um livro, da editora Casa da Palavra, em 2005
Toda vez que me dizem que me ENAMORO mal que é um RAIO, discordo plantado em pés de VEEMÊNCIA. O contraponto é claro: sofro desde sempre de MÁ sorte, e ainda possuo, CONTRA, o meu SANTO que, de fato, nunca foi FORTE. Não TIVE, em verdade, SANTO: não TENHO. E ainda por cima quando eu VENHO é com PORTE - mas de ALMA, que arma não PORTO, posto que não me COMPORTO em esse tipo de DESPORTO. Melhor vivo do que MORTO, guardo as ressalvas todas pra mim. Escolho as roupas pelo GOSTO, mas nas pernas só uso BRIM. E sempre coisa do CURINGA - nunca coisa do PINGÜIM.
Pois me enamorei, em AGOSTO, dum LIVRO que encontrei por aí.
Foi dessas comoções instantâneas que os sentidos estranham aos DESCONFIOS. Assobios de tarde, flores novas nos pés cansados, perfume sujo de grama úmida, a família toda rindo alto de barriga cheia. Soltei um UH escandaloso pelas ventas, mas ninguém o AUSCULTOU. Havia o avistado assim ao longe, bem cedo, no exato QUANDO em que pisei não mais que o DÉCIMO passo por entre os corredores. Abracei com cuidado meus SETE dedos sobre o volume ALARGADO na prateleira, lambi-lha lombada lisa e limpa de ESCAMAS, estalando macio os lábios pelos ENTORNOS doirados e caprichosos que ostentavam seus ADORNOS.
Oh, artifícios, flocos de neve e aurora: eu estava AMANDO.
Pesava um bocado ENORME sobre o meu peito quando deitamo-nos, os dois, no chão da biblioteca. Não havia sequer um GRÃO de pó para perturbar-nos o desejo ARDIDO que nos INCENDIAVA afagos. Paralisei os respiros PASMO ouvindo o FARFALHAR das folhas que percorria veloz com a ponta dos dedos. Sorvi FAMINTO o cheiro de tinta e traça MORTA que lhe escapava com FÚRIA, beberiquei aos BEIJOS as beiras de suas PÁGINAS - sabor de queijo e vinho - estamos em um COQUETEL.
Lobos e ratos BALEIAM seus balés e CAMBALEIAM por cima das mesas embrulhadas em pano fino enquanto as BALEIAS dividem as atenções menos nobres com os LUSTRES e o ILUSTRE que autografa, assentado, um importante FASCÍCULO. Há, também, DESDÉM no ar - e é de MIM que ele vem. Mas eis que, PATO, MASCO um QUÉM de quem não mais se vê REFÉM da situação. Nem é DESDÉM que de mim vem: é nada. Borrão nas bordas dos GLOBOS que piscam fixos numa só representação de paraíso-céu-ÉDEN-HEAVEN. Tudo ao redor escuro e CEGO, consumido pela ausência de atenção que ao resto presto. LIVRO-ME de quaisquer outros estímulos que por ali PULULAM - só meu LIVRO vejo em frente.
Lindo-lindo-lindo, vou sentindo os segundos pingando dos dentes que LAMBO molhados a cada novo CAPÍTULO que vou lendo. Suspiros, silêncios. Fecho os olhos e o LIVRO aos ESTALOS. Inspiro silêncios e ofereço delicadas CARÍCIAS de palmas ao veludoso cetim-pele-de-moça das CAPAS. Expiro silêncios e BAFEJO grotesco calores de março. Mezzo-orvalhadas de suor sincero de quem SUA gemidos no fim dos PUNHOS, as duas mãos PULSAM, abertas e maravilhadas, descobrindo os CAMINHOS. Vou tão na LENTA que até ESCUTO os deslocamentos de ar por debaixo das pontas dos dedos.
Pausa.
De um golpe ABRUPTO, saltito, URRO e o abro ao MEIO. Depois VOLTO buscando o ÍNDICE pra encontrar o SUMÁRIO antes mesmo do PREFÁCIO, que escapo em LÊ-LO. Chocam meus sentidos em igual PARCELA os TIPOS, seus tons de NEGRO, as frases soltas e as frases juntas. FRAMBOESAS brotam aos montes por debaixo e por cima da língua a cada linha nova CONSUMIDA. Os versos sobre os quais VERSAM a obra são muitos, e há de si uma divisão CLARA em duas METADES.
Na primeira, conselhos que indicam, às DICAS, os passos que se deve seguir em vias de reconhecido como BOM NAMORADO. Ó!, me ADMIRO. Bem o que eu QUERIA. São dez, os ITENS. Um deles me diz ME PROVA e é o que faço. CAVOCO os vãos com a GLOSA em HASTE aprendendo o gosto das letras, da COLA, das cordas, dos grampos. Outro me diz me OLHA e, portanto, FITO em reverência por ERAS que se demoram a passar. O seguinte afirma me USA, então, por entre as folhas fechadas, enfio cédulas de plástico de dez PILAS enquanto me dança a dança do STRIP-TEASE. Por fim pede me AMA, então o abraço em URSO forte, protegendo-nos os dois do pra sempre que nem sempre quer ver o dia seguinte chegar.
A segunda metade assusta-me aos quase PRANTOS logo de início. É soturna, SOMBRIA, funesta e FRIA a história que conta, sobre o filho BASTARDO de um rei que teve os dedos QUEBRADOS por anos a fio. Depois, MADURO, voltou seus CALOS contra o MUNDO montando a companhia de CONTROLE DE BOLO de atuação específica em aglomerados de gentes. Funciona na seguinte CRUEZA: formou-se um BOLO, uma confusão, uma RONHA? Eis que surge o FORÇUDO BASTARDO, envolvendo utensílios de oficina MECÂNICA em cada uma das MÃOS e descrevendo PIRUETAS com os braços abertos no meio da MULTIDÃO.
Encerro a leitura TENSO, mas, confesso, não PENSO em me livrar do LIVRO agora que conheço seus MÉIS e AZEDUMES de cabo à RABO. Pelo contrário: é agora que MAIS o QUERO, que mais o ESPERO que me ESPERE com a janta pronta depois de um dia de LABUTA ingrata, que me COCE as costas oleosas de pêlos MORTOS e me DESEJE nos SEUS vazios tanto quanto o desejo, eu, nos MEUS. Meu mais GASTO músculo MUSCULAVA contente e apreensivo. Meu LIVRO: preciso ficar ETERNO contigo. Preciso levá-lo EMBORA comigo.
Sentado, não consigo sair do CHÃO.
No fundo da sala, os demais ANIMAIS persistem EXUDANDO cumprimentos e simpatias pelos poros enquanto o CÉLEBRE autor jaz cansado, embriagado e MORTO sobre a mesa. As penas de um TUCANO encurralado num canto, as querem os CORVOS calvos - e sobre esse assunto o PRESSIONAM. Conformam-se, confortáveis, os macacos, destilando, em MONO, suas opiniões de SÍMIO. Morsas e leopardos CONFABULAM sobre as GAZELAS que os observam em timidez distante. Uma GIRAFA de ALFAZEMA mastiga, aos poucos, o GOGÓ do CADÁVER.
Salta então de meus braços, QUICA no carpete e alcança o AR, meu LIVRO.
Espalha ao MEIO suas páginas, mentindo ASAS com as quais me parece querer FUGAR. As fecha. As abre. As fecha. As abre. A trajetória cada vez mais clara, em direção à janela aberta. O movimento. Barulho de ventania de outono. Ele não olha para trás, mas eu sei que me CONVIDA. Encontro assento sobre o GLÚTEO duplo. Com as pernas trançadas em alusão INDÍGENA, aperto as PLANTAS dos pés de encontro uma à outra e BORBOLETEIO as coxas até ser capaz de alçar VÔO e poder, enfim, seguí-lo para TODO SEMPRE, por onde quer que for, pra onde quer que seja.
Eu vôo.
Eu vou.
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